sexta-feira, agosto 10

"Querido leitor"*

Excerto I de "RUA" (homenagem a Miguel Torga) NÃO VENHA MAIS... - Posso então esperar pela menina, amanhã à tarde, ao sair da loja? - Mas não esteja em frente à porta...Só se aproxime depois de eu virar a esquina... No outro dia lá estava. E quando, cansados de vaguear pela cidade, a deixou perto de casa, tinham rasgado no mundo mais um postigo por onde se via o mar da vida, calmo, azul, a pedir um barco com duas pessoas dentro. A rua das Esteireiras tem pouco sol e é triste. Muito estreita, quem a atravessa quase se sente espalmado entre as frontarias sujas dos prédios mal alinhados. Ao rés-do-chão, entradas abertas para lojas esconsas. Nos andares de cima, janelas e varandas estiolam plantas em caixotes, e seca roupa numa franqueza escancarada. Pelos remendos, grau de brancura, quantidade e natureza das peças expostas, fica patente à curiosidade alheia a condição de vida dos moradores. Até de cada ninhada de filhos o estendal dá relação. Se é grande ou pequena, quantos rapazes e quantas raparigas, se algum suja ainda os cueiros ou não. De maneira que assim feia, bafienta, e habitada por pessoas que saem às oito e meia a correr e entram à noite como penitenciários que recolhem à cela, enegrece os corações. Mas o rapaz estava tão emocionado, tão fora de si, que pisava as pedras húmidas daquele desfiladeiro sombrio, embandeirado de pobreza, com a sensação de caminhar num prado de relva fresca. - Não venha mais... - Só até ali... E ao pé da mercearia Gonçalves Ferrão &Cª, que ficava logo adiante, a desprenderem-se um do outro parecia que tinham dado com as mãos um nó que não sabiam desatar. - Amanhã lá estou no mesmo sitio... - Pois sim... Ela partiu, insegura, sem ver bem o caminho, só guiada pelo hábito dos pés; ele ficou parado, absorto, a olhá-la num deslumbramento, como se o mundo acabasse de ser criado e o contemplasse pela primeira vez. Onze meses depois, quando no parque da cidade - que desde que ficaram noivos visitavam aos domingos - as rolas, os melros e os pintassilgos pareciam moiros a trabalhar nos ninhos, casaram. Muito pálidos ambos da comoção, disseram sim ao do registo e ao padre sem saber o que diziam. E depois do jantar da boda, que acabou altas horas, apenas o último convidado se retirou e entraram no quarto, foi ela que deu expressão ao sentimento de ambos: - Sinto-me tão feliz, que só me apetece chorar... Ele porém reagiu, beijou-a, e no dia seguinte, ao partir para o emprego, deixou-a na cozinha, feliz realmente, a cantar. [...] *Era com estas duas palavras - "Querido leitor" - que o escritor se dirigia nas introduções dos livros que reeditava [UM POETA DE A A Z no DN]
eXTReMe Tracker