"Provinciana?" yes, please
Há dias que não me importo, mas tem alturas que me aborrece o facto de o termo "provinciano" vir carregadinho de sentido pejorativo. Há qualificativos piores, bem sei, mas este diz-me alguma coisa.
Vejamos pois a definição de "provinciano": "Que é natural da província ou que na província tem a sua residência habitual; que não é da capital, cujas modas polidas ignora: "O ar provinciano de Brás fez crer aos curiosos que o homem, sendo patrício de Calisto, poderia esclarecê-lo cerca da criatura misteriosa"(Camilo, A Queda de um Anjo).
Mais do que os modos, é a linguagem que trai o "cristão novo" das cidades. Esse "branqueamento" das origens, tão indisfarçável quanto patético, é incapaz de esconder os travozinhos dos regionalismos ou especificidades da língua local. Um exemplo? Metam meia dúzia de beirões na mesma sala, daqueles que estão nas grandes cidades há anos, pois rapidamente hão-de trocar o coalho por coêlho, e irão todos [a] buscar um copo de água. Não é necessário recorrer a Aquilino Ribeiro. Os sons, o vocabulário e os regionalismos, estão lá para quem os quer ouvir. E sorrir. Ninguém espera que andem de ceira de verga nos braços, cântaro à cabeça, lenço atado ao pescoço, chapéu ou com o buço por arranjar. Esse monopólio pertence às "mulheres de Bragança", ridicularizadas na praça pública, depois de contribuirem anos a fio com o seu trabalho para a economia doméstica. Companheiras dos seus homens desde muito novas, foi a sua dedicação que permitiu aos respectivos machos terem uma vida melhor, ultrapassar as dificuldades, a poupar e manter a arca congeladora sempre cheia. Eles tornaram-se "empresários" de vícios caros com garrafas de espumante a preços milionários, elas esqueceram-se de se ver ao espelho e continuaram a trabalhar em casa, a tratar dos filhos e da criação.
Voltando ao provincianismo tal como o conheço, desconfio que o desprezo que os habitantes de Lisboa votam aos pequenos espaços verdes, aos passeios e às árvores, deve ser fundado em receios de alguma identificação com o meio rural, de onde, aliás, muitos são provenientes. A cidade deve tê-los aculturado pelo pior que o betão representa, tendo o automóvel assumido a forma moderna de deslocação em ruas onde os passeios não existiam.
É também curiosa a forma moderna de traduzir a antiga expressão "ir à terra". Conheço muito boa gente que ainda o diz mas, normalmente, vão à "aldeia". Deve ser coisa mais chique. Ir à terra é mais do que ir à aldeia. É na terra que estão as heranças dos nossos antepassados, sejam elas grandes ou pequenos olivais (geralmente abandonados), a casa e a horta "no povo" (ou seja, dentro da povoação) ao Deus dará. Não é preciso rever o final do filme "E tudo o vento levou" para perceber isto.
Esse receio de poder vir a ser considerado provinciano e a forma pejorativa que isso encerra, nada mais é que uma parolice, expressão usada igualmente para classificar quem não pertence à nossa tribo, tudo gente civilizada, culta, cosmopolita e polida. Tolices. O provincianismo nada ter a ver com o local onde se nasce, onde se viveu durante muito tempo, na forma de vestir ou de falar. O provincianismo está na tacanhez de espírito, nos tiques de tiranete que se vão adquirindo por deslumbramentos vários, na falta de mundo, de humildade, de nobreza de carácter, e na forma prepotente com se enxovalham os mais vulneráveis.
E depois, sejamos claros: essa idílica ideia de província, já não existe. Uma pequena cidade do interior com o carimbo do projecto Polis, cada vez se assemelha mais a outras pequenas cidades igualmente "modernizadas". Pouco a pouco vão perdendo as suas características e as suas principais mais-valias, ou seja, os seus antigos lugares de socialização inter-geracional, e as aldeias há muito que perderam os seus habitantes.
Aos dezoito anos, os meus pais, uns excelentíssimos provincianos, meteram nas mãos da filhas, umas obscuras provincianas, bilhetes de inter rail para irem ver o que ali não havia e saberem tratar da vida noutras paragens. A eles lhe devo a minha vontade de ver e conhecer o mundo. O "provincianismo" está nas cabeças de cada um, não está nos traços linguistícos distintivos mas na na postura afectada e possidónia com que o Herman José tão bem retratava no "Humor de Perdição", a mãe Maximiana vinda das berças, e a filha Pureza Madre de Deus Taixaira da Cunha, vulgo Marisol.
Anos e anos depois, trago ainda comigo o melhor e o pior do "provincianismo", traduzido perfeitamente em palavras, actos, acções e omissões. Uns estão à vista, outros nem por isso, mas cá andam ainda comigo e desconfio que os levo para a cova.
Humor de Perdição - Chegada de Maximiana
2 Comments:
Que magnífico texto! Eu, que sou uma provinciana assumida (apesar de ter nascido em Lisboa) e que "vou à terra" sempre que posso, tiro-lhe o chapéu pela desmistificação de tanto preconceito e complexo bacoco que para aí vai. Não há nada mais patético do que ver alguém tentar ocultar as suas origens, que são, muitas vezes, bem mais nobres do que as imaginadas substituições.
Parabéns.
Excelente, Isabel. Bjs duma alentejana provinciana!
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