Fim de tarde
Já muito tarde, metro meio vazio, poucos ruídos e poucos jovens. Descobrem-se as olheiras, movimentos cansados, aos telefones combinam-se estações de encontro, confirmam-se horários, é a vontade do regresso, o beijo que tarda, o carinho que se há-de dar, o sorriso, o abraço, mais trabalho, mas para os nossos, com os nossos.
Rostos fechados não deixam ver por detrás das portas, a mulher da frente olha absorta para o reflexo no vidro, outra vai olhando para as mãos e uma outra vai olhando para todos. Estranhos que partilham um local comum, com pressa de chegar ou medo de regressar. Aquecer a sopa, refogar a carne, outra máquina de roupa, o almoço dos miúdos, a inquietação com os pais, lembrar os remédios, um bom marido, outro nem por isso, é outro dia que passa mas lá estarão à espera ou será que ainda não chegou.
Não há crianças, nem jovens, nem velhos. Hão-de todos voltar amanhã, em grupos ruidosos, em birras matinais ou em viagens solitárias.
Esta é a viagem de regresso, com as marcas da idade, os sacos, o cansaço, a felicidade da expectativa, a rotina de mais um dia, o medo da incerteza, a tristeza da solidão, os braços apoiados nas vidraças, as costas que doem e os pés inchados. Sei lá da vida dos outros. Estação terminal.
Texto editado
3 Comments:
Uma cidade tão grande que é Lisboa, e no entanto as tantas pessoas que a Lisboa tem parecem solitárias, cruzam-se nas ruas no metro, nos autocarros, sempre a fazerem o esforço, o desvio latente de se não olhar ninguém cara a cara... os tais x centímetros de distância de segurança que os humanos necessitam...Não há sorrisos...Só automatos.
O Metro é um enorme saco de solidões partilhadas.
Belíssimo texto, Miss Pearls.
Então e no do Porto? Vocês sabem lá...
Não se olha, pois não. Medo, é o que é. Toda a gente vive dentro dessa bolha, que cresce e se agiganta.
A qualquer hora do dia.
As manhãs são mais lerdas, mas o receio está sempre lá. Latente.
Toda a gente tem nódoas negras; toda a gente geme baixinho.
Agora entretêm-se com umas coisinhas enfiadas nos ouvidos, a aliená-los ainda mais. A distanciá-los. A protege-los (?).
Sacam livros, revistas, jornalecos.
Enfiam o nariz naquilo, como se ali residisse a solução da sua vida.
A salvação.
Olhar os outros é blasfémia. Sorrir, um perigo.
Esboçar um gesto, uma aflição.
O meio-dia, se solar, impõe lentes escuras. Gigantes. ‘Amoscalhadas’.
Quando chove, enrola-se o guarda-chuva até se sair, ligeirinho.
Tropeça-se em sacos, carrinhos de bebé, trouxas e pés grandes.
As solidões multiplicadas.
A noite é atemorizante. O silêncio e a chiadeira dos trilhos, os avisos das paragens a fazer estremecer. Os sininhos, o ranger das portas, o arrastar do dia nas pernas maçadas. As olheiras. Os vícios disfarçados. O medo, sempre, o medo de tudo.
Às vezes chega um cão-guia. Meigo, manso, modorrão. Aí, sorri-se para o invisual e afaga-se o companheiro sem nos mexermos. Abraçamos o invisual sem respirarmos. Oramos por ele. Apaixonamo-nos pelo cão. Lamentamos, sem mexer os lábios, a situação.
Ou então, uma criança, um caracolinho desalinhado, um sorrisinho com dois dentes, uma mãozinha papuda.
Que lindo. Os progenitores, babados, às vezes reagem. Às vezes fogem.
Uma bicicleta. Um segurança assustado (disfarça, mas está). Revisores aos pares, mecânicos. Iguais.
Gente que entra e sái e nunca chega a parte nenhuma.
Andamos todos em círculos.
Todos os dias.
A vida toda.
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