terça-feira, outubro 27

Não desfazendo

Houve tempos em que esta era uma expressão de politesse. "A sua tia é uma santa mulher, não desfazendo", "o sr. Augusto sempre foi um homem prestável, não desfazendo". Como se diz agora, era uma fórmula dois em um: elogiava-se o ausente e passava-se a mão pelo pêlo ao nosso interlocutor, sem ofensa.
Devia ser simpático ouvir "a sua prima é muito bonita, não desfazendo, claro". Como se pudesse existir uma leve insinuação de que uma era deveras encantadora e a outra, um grande traste, não desfazendo. Não se ofendia ninguém. Pelo contrário, era uma forma lisonjeira de agradar mesmo que a sobrinha fosse uma megera, o patrão um miserável e a prima aparentada com a família Adams pelo lado do pai.
Na minha imaginação, "não desfazendo" implicava uma tonalidade de voz algo melosa, uma vénia, ou uma certa postura corporal reverencial. Sempre para não ofender, para não haver melindres, pois a sobrinha tinha fraca auto-estima, o patrão maus fígados e a prima guardava rancores calcinados pelo tempo. Não sei bem porquê, sempre a associei a um homem, mas os tempo eram outros, não era de bom tom a assertividade moderna nem os confrontos verbais medicados pelos psicólogos da actualidade. Ai o subconsciente, os demónios, a repressão familiar, os condicionamentos da religião, é só escolher. Poderia ser uma acto de cavalheirismo, mas igualmente de boa educação, sou uma exagerada.
No meu mais requintado cinismo, sempre acreditei que nem sempre de gentileza se tratava quando, de chapéu na mão ou voz melodiosa, se elogiavam as qualidades do ausente e se louvavam as virtudes do interlocutor, de preferência uma mulher. Vistas bem as coisas, a que propósito um homem tentaria agradar a um outro homem se não pela mais pura graxa, não desfazendo ? E lá estou eu, de novo, com os tiques modernos e a esquecer as relações de poder e as práticas de uma educação à moda antiga.
Anyway, fosse por cavalheirismo, educação ou um mero exercício de hipocrisia, não desfazendo, era uma expressão agradável. Nunca me disseram "O Einstein era um homem brilhante, ou a Eva Mendes é uma mullher lindíssima, não desfazendo", mas não se pode ter tudo e já sou do tempo do cavalheirismo em acelerada decadência.
É possível que ainda hoje se use esta expressão mas, não desfazendo, contém um tom jocoso que brinca com a sua utilização. "Para gozar", diz-se hoje. Uma laracha.
Nem sei bem porque me fui lembrar disto. Já em tempos escrevi sobre o estojo e o fumo. Talvez por ainda encontrar pessoas verdadeiramente gentis ou por me apetecer falar da hipocrisia. Para chata basto eu, não desfazendo.

3 Comments:

Blogger CPrice said...

Ah ..! Essa conclusão tocou-me ;) que o sou também em doses industriais na maioria das vezes ;) e nem pense Isabel que vou acrescentar um "não desfazendo"! ;)

Beijinho
(Once)

9:04 da manhã  
Blogger Mike said...

Tenho lido, por essa blogosfera fora, muito bons textos... não desfazendo. ;)

1:06 da manhã  
Anonymous blita said...

Ñ me lembro de mo terem dito alguma vez mas reconheço a expressäo. De facto é de homem, ñ desfazendo.

6:08 da manhã  

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