quarta-feira, março 11

Do luto

Por vezes há coincidências ou porventura sou eu que estarei mais atenta a pormenores trazidos por conversas entre amigos, tantas vezes por causa de um livro, de uma imagem ou de coisas das nossas vidas. Mas adiante. Por um acaso, cruzei-me com um velho que trazia um fumo na manga do casaco e escuto uma referência na televisão ao recato a observar com o luto: o rádio ligado e roupas garridas em tempos de luto.
Creio que em tempos já escrevi qualquer coisa sobre o luto não estar na moda. Só quem vive sobretudo nas grandes cidades é que anda sempre fashion, porque nas aldeias, muito mudou na forma de o viver, mas continuam a respeitar-se os símbolos e os sinais exteriores da perda. E se em muitas aldeias se adaptaram a novas circunstâncias, com velórios a horas marcadas, nos meios rurais duram o tempo que têm de durar, a noite toda, de porta entreaberta, faça frio ou calor.
É certo que é cada vez mais raro, mas ainda se veêm, às portas de estabelecimentos comerciais uma folha com uma cruz ou um fita negra por luto de algum dos proprietários, assim como se fazem ainda cartões ladeados a preto em sinal de agradecimento pela presença ou pelo envio de pêsames. Creio que hoje em dia as empresas da especialidade tratam de tudo, até do fornecimento de máquinas de café à entrada da sala onde se encontra o morto. Talvez por uma questão de bom senso, mas nunca vi nenhuma a tirar capuccinos ruidosos como em salas de convívio.
Recordo-me ainda do desconforto que senti quando, já em Lisboa, há muitos anos, confrontada com a morte de um conhecido, constatei não ser costume preparar e levar uma refeição à família enlutada. Nunca tal tinha visto uma coisa assim. Na minha aldeia, após o funeral, chegava a vizinhança com comida quente e tudo deixavam limpo e em ordem antes de sairem. Era assim a solidariedade comunitária e uso a palavra sem custo nem embaraço.
É possível que as visitas de pêsames também estejam em desuso (fará certamente parte de alguma etiqueta da morte), o que não é de admirar pelo enorme constrangimento sentido por ambas as partes. E se é verdade que os lenços, as meias pretas, o calendário para "aliviar o luto", tudo isto já desapareceu, creio que alguma hipocrisia desapareceu também com o silêncio forçado de televisões e rádios, bem diferente de uma genuína falta de disposição para ruído de fundo. Só quem passou por isso entenderá o que quero dizer.
Perguntarão os leitores o que me deu para uma conversa tão tétrica a estas horas da noite. A verdade é que o luto, o seu cerimonial, ou melhor, a sua prática da forma como a conheço, está a tornar-se num capítulo de manual de etnologia ou tema de antropologia. Se forem estudos de caso de lugares distantes, tanto melhor, maior o exotismo do lugar e mais excêntricos os seus indígenas. Na blogoesfera, também pouco se refere o luto, mas não é de estranhar, pois isto é suposto ser um lugar onde somos todos felizes. A morte é cada vez mais um artigo de jornal sobre o monopólio das agências funerárias, a crescente laicidade dos velórios e o preço das missas cobradas em paróquias cuja localização desconhecemos.
Talvez por isso estranhei tanto ao ver o velho com o "fumo" na manga do casaco, como se essa ostentação do luto pouco tivesse de privado, vivido entre portas de persianas corridas. De facto, nada é mais assustador que o confronto com a morte. E ele ralado.

7 Comments:

Blogger CPrice said...

Comovida eu por todos os lutos que já tive .. e pelos que ainda sinto.

Obrigada Isabel *

8:50 da manhã  
Blogger CNS said...

A morte tornou-se um incómodo neste mundo que se quer perfeito e jovem. Neste mundo que não sabe comunicar. Nem falar. Muito menos do proprio luto.

11:42 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Cara Miss Pearls

Com uma genuína falta de disposição para ruído de fundo confesso nunca ter pensado que "isto (blogosfera) é suposto ser um lugar onde somos todos felizes".
RM

10:51 da tarde  
Blogger M Isabel G said...

RM,
Digo isto, naturalmente, com ironia :)

obrigada pelos comentários Once e CNC

11:03 da tarde  
Blogger JC said...

O "velório" tem uma origem bem material: em tempos de técnicas médicas pouco evoluídas, destinava-se a dar tempo para confirmar que "o morto esta mesmo morto" e não iria haver qualquer engano. claro que houve necessidade de lhe dar uma explicação menos brutal e mais emocional, daí a expressão "chorar o morto". Quanto a rádio e TV, penso que isso reflecte um poucoa evolução desses "media". Há 40 ou 50 anos, principalmente a rádio era um meio para, fundamentalmente, ouvir música: diversão, alegria. Por isso, na 6ª f. Santa na rádio apenas transmitia música sacra, que não se incluia nessas categorias. Hoje a função da rádio e TV é diversificada: cultura, informação, etc. Para além disso, quem vivia sozinho?, pessoas, normalmente idosos, para quem a TV e aqueles programas que vemos nas salas de espera são a única companhia.
cumprimentos, cara Isabel.
JC

10:55 da tarde  
Blogger JMP said...

Parabéns pelo post. Muito bem dirigido. Hoje em dia, cultivamos a morte na mesma medida em que fugimos dela. É paradoxal este quotidiano cheio de desafios-limite à vida e fugas para a frente. Cumprimentos.

2:33 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Vénia pela observação face ao luto (e à nossa actual privatização da morte)
e também, num outro plano, para isso de termos de parecer felizes

8:57 da manhã  

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