quarta-feira, agosto 17

Os espelhos

Old Women of Arles-Gauguin

Vejo-as chegar com ar abatido e perguntam se podem descansar um pouco. A princípio não entendi bem; as empregadas trataram-nas pelo nome e pareciam ser duas clientes idosas a necessitar de cabeleireiro. Sim, os cabelos ralos e desbotados estavam a pedir coloração e secador. Entretida com a conversa sobre os benefícios das plantas medicinais, entre uma limas e vernizes, só mais tarde me apercebi que vinham mesmo descansar,  sentar-se um pouco antes de continuar a caminhada.
Seriam duas irmãs, com ar de prosperidade há muito desaparecida, roupa sem brilho, mas ambas com uma fiada de pérolas sob a camisa clara na pele magra. Imaginei-as bonitas e graciosas em tempos de abundância. A vida deve ter-lhes cortado as voltas e ali estavam cansadas, de cabelo desbotado, sapatos cambados, mas com uma dignidade que nunca perderam, não obstante as reformas miseráveis que as faziam percorrer distâncias a pé num corpo que já não aguentava.
Sentaram-se em frente a um espelho, mas nunca se viram de frente. Cabeça erguida, orgulho ferido, evitaram olhar para as mulheres presentes, porventura envergonhadas de tanta fraqueza e velhice. As funcionárias trataram-nas com carinho à chegada, mas nem uma palavra trocaram; precisavam das forças todas recuperadas naqueles instantes. Fugiam dos espelhos, das presentes e não pude deixar de me sentir constrangida perante a pobreza, o cansaço e a velhice. Aquelas duas irmãs, sem o brilho e abundância de outrora, que educadamente pediam uma cadeira para repousar, não vinham à patetice das limas, dos vernizes azuis e dos pés dentro de uma tina. Silenciosamente vinham só descansar os corpos magros, vergados pela idade e pela falta de saúde. Fugiam da própria imagem, dos olhares alheios e da nossa comiseração. Evitei olhá-las e não houve conversas de circunstância, mas que estivessem à vontade.
Passados breves minutos, levantaram-se, agradeceram e sairam uma atrás da outra, aquelas duas mulheres, em tempos graciosas e elegantes, agora sem forças nem dinheiro para taxi que as deixe à porta. Pobres e velhas numa grande cidade.
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No ma-schamba, a Ana L, uma moça da minha terra, deu-lhe o título certo: Recados do futuro.

1 Comments:

Blogger Fernando Martins said...

Belo texto, duríssima realidade. Um beijo, Isabel.

10:22 da tarde  

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