Outro bairro
O inferno começa cá fora: voltas e mais voltas até encontrar um lugar decente para estacionar enquanto os valentões azougados vão deixando as viaturas onde calha, ou seja, onde lhes apetece. "Começa tudo cá fora", ia repetindo para mim própria. Os tansos, disciplinados e repeitadores, suam as estopinhas debaixo do sol quente à procura de espaço dentro da legalidade; os outros é mesmo ali, na passadeira, em segunda fila, no passeio. Porque podem, claro está. "Não vou longe, não. Até aqui tenho que andar bastante para chegar. Parvinha, és sempre a mesma, mas também é isso que te separa da canalha". Pois sim.
Lá dentro hesito entre as opções: imposto sobre o carro, sobre o rendimento, sobre imóveis, execuções fiscais. A ementa é imensa, mas olhando para o quadro, verifico que até tenho um número catita; com um pouco de sorte saio dentro de uma hora. Ajeito-me entre gente modesta, homens e mulheres que vêm ao imposto (só podem entregar dois impressos cada) com muito ainda que penar. Não se avistam ricaços; têm quem lhes trate da vida fiscal, os sortudos (suspiro).
Entretanto, o contador vai disparando número atrás de número, sem ninguém dar sinal. Mas o contribuinte vai olhando, é agora, ainda não, demora muito, sorte a minha que está quase. Venho pela reclamação, sem esperança nem expectativa de sucesso. Venho porque é a única forma de lutar contra aquilo que me parece ser a injustiça fiscal, tentativa inútil de vencer a máquina montada para eu perder, depois da relação de bens que se apressa a exigir com carta e aviso de recepção logo pela fresca, de cobrar sobre o que é meu sem o ter pedido, de me obrigar a abrir gavetas que não quero abrir. Mas reclamo porque posso, porque devo, por nada, sei lá.
Eis que chega a minha vez, a funcionária é despachada e a hora já vai tardia, as portas fechadas. A bem dizer, os que estamos ali somos os tipos honestos, os que vêm resolver assuntos; aos trafulhas não os conseguem apanhar. Mas o estado fiscal quer saber sempre de mim, por onde ando, o que gasto, o que tenho, a marca do carro, o prédio rural, as oliveiras, com quem vivo, a minha morada e principalmente que número sou. A justiça ignora-me, mas aqui nunca se esquecem de mim.
Saio com dois impressos, uma lista de papelada para pedir e apresentar no final. Saio com a conta por pagar e reclamar depois. Mas são amigos: deixam pagar por duas vezes. Obrigadinha.
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