segunda-feira, janeiro 24

Visita III


A minha tia já me tinha falado dela em cartas que me envia regularmente de St. Mary Mead onde se encontra em convalescença, aldeia pacata onde o tempo corre devagar. Apesar de me assegurar repetidamente que a Mrs. Jones se tem esmerado no acompanhamento diário e nas tarefas domésticas, isso não me impediu de sentir alguma inquietação: uma idosa com pouca visão e ossos frágeis é motivo mais que suficiente para me tirar o sossego.
E foi assim que fui parar a St. Mary Mead, aproveitando uns dias de férias por gozar. Ia fazer-me bem, pensei. Descanso, leio, passeio pelas redondezas e, lá no fundo, espero por uma volta na minha vida. Ia finalmente conhecer o famoso "country" das séries da BBC e dos filmes com o Colin Firth e com o Jeremy Irons.
Foi numa dessas manhãs em que me preparava para sair, que conheci pela primeira vez a Miss Marple. Já me tinham confidenciado que, apesar do ar aparentemente distraído, era uma pessoa intuitiva, atenta aos pormenores, com uma inteligência viva e muito conhecedora da natureza humana. Dos mexericos locais retinha sinais e aspectos que consideravam relevantes e, vá-se lá saber porquê, acabavam sempre por se provar de grande utilidade para deslindar pequenos mistérios: "Qualquer coincidência é sempre digna de nota. Poderá desfazer-se dela mais tarde, se for apenas uma coincidência", costumava dizer.
Como ia dizendo, vinha visitar a minha tia. Trocámos algumas palavras, as suficientes para confirmar tudo aquilo que me tinham revelado sobre a sua perspicácia e saí, tranquilizada por deixar as duas entregues à discussão sobre a mudança do horário dos comboios.
No dia seguinte, voltámos a encontrar-nos na única mercearia da aldeia e estou mais que certa que não lhe escapou o conteúdo do saco das minhas compras (uma garrafa de vinho decente, entre outras coisas), nem a pressa que revelei (que teria visto em mim, a gentil Miss Marple?).
Não tornei a pensar mais no assunto, enredada que andava com a minha vida, mas no dia seguinte -  recordo perfeitamente que era Domingo pois todos se dirigiam para a igreja - íamos praticamente chocando junto à casa de chá onde estavam afixados os horários dos comboios. Desculpei-me como pude, atrapalhada. Tranquilizou-me justificando-se também com alguma pressa, olhando para a torre da igreja e para a pequena medalha que trago ao pescoço, lamentando não existir nas redondezas nenhum local de culto da minha religião.
Despedi-me, balbuciando uma qualquer banalidade, mas nada lhe escapou: olhou em direcção à estação e perguntou:  "someone special, my dear?"
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