sexta-feira, janeiro 21

Visita II

As janelas estão encardidas à direita e a minha silenciosa companheira de viagem dormita de cortinas fechadas. Fico sem poder ver as encostas do Tejo com as árvores arrumadinhas e as casas perdidas no meio do nada que vão desaparecendo com o balouçar do comboio. É má conselheira a falta de vistas, que nos traz de volta a tristeza das ausências e as lágrimas que não se podem conter. Por isso, nunca sei se custa menos chegar ou partir.
As sombras vão descendo sobre o rio enquanto o corredor se desasossega. O céu azul de hoje faz esquecer os últimos dias com muita chuva e frio, como se quisesse retribuir o nosso cuidado e esmero.
Ao meu lado direito já não reconheço ninguém, mas suponho que mesmo sem saberem o meu nome,  me tiram às feições lá no fundo das suas memórias. Por vezes sinto olhares desconhecidos ou comentários em voz baixa ou alta, amáveis ou tristes, mas a nenhum deles me habituei :"És tão aprecida, igualzinha, dizem". O cabelo branco que continua a surgir sem piedade, estimula as semelhanças e creio que foi isso mesmo que terá pensado um antigo professor de liceu que subiu comigo o elevador da estação.
Venho da casa de um amiga idosa de voz doce e trato amável, sobrevivente das maleitas do corpo e das tragédias da vida. Mas fala-me com orgulho dos netos e mostra-me a fotografia do menino bisneto, uma criança linda. As romãs e tudo o consegui trazer pesam no braço e mais braços tivesse.
Estou de volta à cidade que não é a minha, mas também não sei de que terra sou. Passa entretanto o cobrador e mostro-lhe o bilhete num inconfessável receio de estar no comboio errado (de onde me virá este receio?). Os restantes passageiros são silenciosos, nada de matracas de estudantes, de sons telemóveis ou conversas em alta voz e pela primeira vez abro o Bolaño, leio a capa e a contracapa. Mas antes, o sumo e os ovos verdes. E vontade de fechar os olhos. As figurinhas da arte da guerra podem esperar.
(Dia de Todos os Santos)
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