domingo, fevereiro 7

1907

Ultimamente tenho escrito uns posts em forma de qualquer coisa sobre mulheres imaginárias em situações imaginadas, mas que poderiam ser personagens de situações verosímeis. São mulheres e não mulherio, expressão abominável de sentido algo pejorativo e para a qual não existe correspondência no masculino. Não digo que se trata de um termo sexista, se bem que já o tenha ouvido em situações que pouco nos dignificam (nós mulheres). Aliás, não tenho a menor dúvida de que a sociedade (ainda) tem vestígios - que deveriam ser já arqueológicos - de um comportamento preconceituoso para com as mulheres em geral, tratando de as catalogar ou subestimar na sua vida profissional (seja ela qual for), assim como nas suas vidas pessoais, ou seja, pelo estatuto, idade ou imagem. E em bom rigor, onde andará a solidariedade feminina, quando precisamos dela? Nos tempos modernos legislou-se a discriminação positiva, e o que deveria ser rejeitado com indignação, é alegremente aceite, saltando de saltos altos no trampolim para o poder em função do sexo. Não em meu nome. Bem sei que esta praia também é minha, mas não é isto que me traz a este post.

Corria o ano de 1907, limiar da Implantação da República. Em Fevereiro desse ano, foi aprovada a lei que reconhecia a liberdade de associação sem autorização prévia, realizava-se em Lisboa um grande comício a favor da liberdade de Imprensa e, no dia 26, o presidente da Associação de Agricultura renunciava ao seu mandato de deputado, em forma de protesto pelo modo como o governo procedeu na questão vinícola. Os movimentos feministas faziam-se sentir em Inglaterra, França, Itália e nos EUA.

Por cá, Virginia Quaresma escrevia assim no jornal "O Mundo": "Não; não julguem, não devem crer que possamos incitar a mulher portuguesa a reclamar o direito do voto, a investir-se na autoridade de magistrado, a cair no erro desastroso de proclamar o amor livre e de tudo querer ser nos domínios políticos e morais da nossa sociedade. (...) É perante uma vergonha estatística (2 406 245 mulheres analfabetas) destas que é necessário julgarmos com serenidade e critério imparcial o que pode e deve ser o feminismo em Portugal.

Completamente analfabetas, sem uma educação moral capaz, sem o espírito fortificado para os embates sociais o que se pode dizer no jornal ou na tribuna a mulheres assim? Para serem exigidos direitos é necessário primeiramente que sejam exigidos deveres. Os grandes ideais politicos não se proclamam quando as nacionalidades ainda estão embrionárias e o espírito dos povos adormecido. (...) O anarquismo em teoria, a moral científica tudo isto nos faz praticar o Bem, enaltecer a Verdade, adorar a Justiça, independentemente de leis, de peias ou de convencionalismos é, na realidade, um Ideal sublime que nos conduziria à perfeição, mas poderá ser compreendido por todos (.... ) Ideias excessivamente avançadas em meios acanhados, dão resultados contraproducentes e se bem auscultarem os acontecimentos históricos com critério são e imparcial, hão-de convencer-se desta grande verdade, (...) Schoppenhauer, Montaigne, Voltaire e tantos outros filósfosos com individualidades bem demarcadas na História do Livre Pensamento, frisaram em vários pontos das suas obras este princípio como devendo servir de lição a toda a humanidade.

É necessário que as feministas portuguesas tracem um programa criterioso de acção prática. Ponham-se de parte exaltações ridículas, ideias prematuras, combates tão violentos como inúteis e coliguem-se fraternalmente as intelectuais portugueas, a fim de contribuírem para que decresça este número aterrador de analfabetos.

Lembrem-se de que a "educação" está tão pouco difundida em Portugal como a "instrução" e de que certas doutrinas, expostas ao nosso meio feminino tão ignorante e inconsciente, trazem retrocessos socias e não os progressos que, por ignorância ou por uma quimera desculpável, se julgam assim atingir.

Não estamos na Inglaterra nem nos Estados Unidos ; encontramo-nos em Portugal com uma percentagem de analfabetos que nos deve envergonhar e fazer acordar a voz da consciência.

(...) Fundem-se primeiro do que tudo escolas femininas, equilibre-se o espírito da mulher com uma educação moral forte e orientada, levante-se-lhe bem alto a noção da dignidade, inocule-se-lhe o dever da virtude e do amor da caridade. Em campo prático, sem discuros espalhafatosos, sem correrias desnortedas é esta a missão, a verdadeira e nobre missão a que se deve por enquanto impor o feminismo em Portugal.

Virginia Quaresma

[O Mundo. Lisboa, 9 Fev. 1907. P. 4, coln. Jornal da Mulher]

in "1907: No advento da República" . Lisboa: Biblioteca Nacional, 2007

(Imagem de “Portugal Século XX”, de Joaquim Vieira, a partir da Bib Esc. Serpa)
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