sábado, abril 12

Cabeça, tronco e membros

Enquanto ontem à noite assistia a mais uma série do CSI, em que uma patologista cortava partes do cachaço de um valdevino e conservava bocados de um desgraçado envenenado por nicotina através de um preservativo (creio aliás, que é repetição, porque me recordo desta tão "criativa" forma de assassinato), ocorreu-me a excelente crónica de Pulido Valente no Público que a Carla ontem referiu. Aqui fica o texto escrito por um dos poucos que ainda vale a pena ler:

Sábado, 5 de Abril 08 - O que "pensa" a televisão-Vasco Pulido Valente "Com a idade durmo cada vez menos: cinco horas normalmente, seis com alguma sorte. O grande terror é, por isso, acordar de madrugada ou no meio da noite e andar por casa sem ocupação, à espera que o sono volte ou que o tempo passe. Para evitar este vexame da terceira idade, tento não me deitar cedo e fico horas sem fim imbecilizado e boquiaberto a ver televisão. O que vejo não deixa de ser curioso e de certa maneira intrigante como retrato do Ocidente contemporâneo, ou, se quiserem, da América contemporânea. De série para série e de filme para filme, os temas não mudam: primeiro, a "beatificação" da mulher; segundo, a "sacralização" da criança; e, terceiro, a obsessão com a morte. Não a morte "clássica" pela violência, relativamente rápida e distante: a morte "representada" com franqueza pelo cadáver. Numa era de feminismo, ainda militante, a "beatificação" da mulher não surpreende. Desapareceu a vampe, a espia, o ogre doméstico; a mulher anos 30 e 40, que seduzia, atraiçoava e explorava o homem. Hoje só há a "mulher-herói" mais forte e competente do que o homem, ou a "mulher-vítima", que o homem (o serial killer ou o oportunista brutal) rapta, viola, tortura e assassina. Tudo isto está na ordem do dia e é sempre pretexto para a mesma história cautelar: não confiar nunca no macho da espécie. E daqui vem, evidentemente, como corolário, a "sacralização" da criança. A criança inocente, incorrupta, quase angélica, que o adulto perverte e atormenta e que usa como objecto do seu prazer (o pedófilo) ou do seu interesse (da família perversa ao criminoso comum, que "trabalha" prosaicamente para o resgate). A mulher e a criança da televisão ainda se compreendem. O que já não se compreende tão bem, numa cultura da saúde, é o fascínio pelo cadáver. Uma patologista é a personagem principal da série A Patologista (naturalmente) e da série Ossos. Nos CSI (Las Vegas, Miami, Nova Iorque), poucas vezes faltam uns minutos de autópsia, com a exibição, bastante realista, de um estômago ou de um fígado, de um cérebro ou de um coração. Como não faltam vários géneros de corpos putrefactos. Será que as pessoas precisam, e gostam, de saber onde as vai levar tanta saúde? Ou será que o espectáculo da matéria humana decomposta esconjura a morte? Pelo menos, na ausência consoladora de uma outra vida, a miséria desta atrai o Ocidente. Para além daquilo, não existe mais nada. "

3 Comments:

Blogger Cheguevara said...

É para nos mostrar que mais vale ser cremado, do que ficar com o tal aspecto de matéria decomposta.

Bem visto VPV.

3:52 da tarde  
Blogger Cunegundes said...

Invenenado??????

11:13 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Temos portanto uma realidade sem cabeça, apenas algum tronco e desmembrada... :)

11:29 da tarde  

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