domingo, março 4

Viagem "De comboio à Invicta"



com o Ricardo Garcia no Jornal Público: outra vítima de experiências humanas martirizantes.
Por acaso não me tinha ocorrido essa do chá de zabumba. É possível, sim. O resto da viagem, podia ser eu. Infelizmente sem nenhum convite para rojões à minhota.

"Fui ao Porto. E fui de comboio, que é melhor do que enfrentar o wrestling rodoviário na Auto-Estrada do Norte. Há sempre duas opções de embarque em Lisboa: ou na decadente estação de Santa Apolónia, ou na inóspita Gare do Oriente.
O arquitecto que concebeu a última criou numa obra soberba, de formas perturbadoras, linhas arrojadas e materiais mirabolantes. Quem vê o resultado até acha que o homem tomou chá de zabumba - uma mistela brasileira capaz de libertar o cérebro dos constrangimentos da normalidade, digamos assim. Mas aposto que o criador da gare não anda de comboio. Esperar pelo comboio naquela estação é acto facilmente enquadrável no domínio das experiências humanas martirizantes. Engenhoso, o projecto evitou qualquer recôndito, parede ou pilar que pudesse servir de abrigo. O utente resulta exposto a ventos de todos os quadrantes - beneficiando, desse modo, de uma merecida dose de penitência por ter ousado utilizar aquele modo de transporte.
A solução é esperar na zona das bilheteiras, no andar inferior, região fantasmagórica por excelência. Foi para lá que me dirigi, para evitar mais chicotadas eólicas. Inicialmente, não vi ninguém e o que mais se assemelhava a um ser humano era uma vaca da Cow Parade. Senti-me ligeiramente ungulado. Mas não mugi, por razões óbvias de auto-estima.
Encontrei uns longos bancos de madeira, ideais para dormir em casos extremos de carência. Mas para sentar, só mesmo quem dispõe de excessos glúteos é que se ajeita. Perdoem-me a confidência, mas sou do género ossudo e tive de alternar o apoio entre o flanco esquerdo e o direito para me aguentar sem traumas ortopédicos.
Entretinha-me nesta basculação corporal, quando uma voz ecoou nos altifalantes, sinalizando a existência de vida na estação. "Vai dar entrada na linha número quatro o comboio Sud-Express, com destino a Santa Apolónia", disse a voz, para a seguir acrescentar: "Informamos que não é permitido utilizar este comboio no percurso até Santa Apolónia". Magnífica peça de informação, portanto.
Quando faltavam oito minutos para o meu embarque, muni-me de coragem e subi para o cais. A composição chegou e, naturalmente, todos entraram pelas portas erradas. Os passageiros da carruagem número oito subiram na carruagem número um, os da quatro, na número sete, os da cinco, na número dois. Seguiu-se aquele amigável trânsito interno de passageiros pelos corredores, saudando-se mutuamente com chapadões de bolsas a tiracolo e atropelamentos com malas de rodinhas.
"Desculpe", disse uma senhora ao passar por mim, e já o meu dedão do pé esquerdo tinha sido esmagado por 30 quilos de bugigangas alheias. Fui para o meu lugar e nele, refestelado e a comer uma sandes, encontrava-se outro passageiro. "Creio que este é o meu assento", disse eu, polidamente. "Mas o meu também é o 56", retorquiu o homem, expelindo alguns farelos. Realmente era o 56, mas da carruagem seis. Estávamos na um.
Resignado, o homem saiu. E eu, depois de deixar arrefecer a poltrona, por instinto sanitário, finalmente posicionei-me para três horas de viagem até ao Porto.
No trajecto, ainda ofereceram uma refeição. Vinha num tabuleiro similar aos das viagens aéreas, trazendo amostras alimentícias de dimensões microscópicas e sabor a polímero. A diferença é que eram pagas, enquanto nos aviões só comemos porque é de graça - pormenor irrelevante, mas que tem toda a importância.
Eu preferi o jejum, até descer na Invicta, onde me esperavam rojões à minhota e vinho tinto, em porções pantagruélicas. Depois, desculpem, mas não me lembro de mais nada. "

13 Comments:

Blogger Pedrrinho said...

Tem toda a razão, no entanto o que registo é a impotencia que o Português médio sente na hora de denunciar estas situações, eu como utente da estação queixo-me a quem?

1:00 da tarde  
Blogger Jansenista said...

Hehehe! Pois eu vou mandar rezar um lausperene a todos os incautos que, tendo a possibilidade de apanhar o trem em S. Apolónia, preferem o apeadeiro de Braço de Prata. É que assim os mais avisados, nos quais se conta este serviçal de V.as Senhorias, entram calmamente nas carruagens, sem bousculades, depois de aguardarem numas salas algo tristonhas e despovoadas, mas com paredes e tecto.
À vinda, melhor ainda, por todos os Santos! O trem esvazia-se em Braço de Prata e segue para S. Apolónia apenas um grupinho bem selecto, que tem a aguardá-lo uma fila interminável de táxis - tudo na maior calma e comodidade.
Enfim, enfim... viver não custa, custa é saber viver...

2:24 da tarde  
Blogger Sérgio Aires said...

Vir ao Porto e não avisar os autóctones... É bonito isso, muito bonito... Como dizia a minha avó (outra autóctone): "mais vale dizer que não me gramas!!!".

3:43 da tarde  
Blogger M Isabel G said...

Caro Sérgio,
Desta vez não fui eu que viajei, mas na próxima viagem está prometido avisar os indígenas com alguma antecedência.
Um abraço e obrigada

:)

3:46 da tarde  
Blogger M Isabel G said...

O Calatrava nunca lá deve ter posto os pés. Aquilo foi feito a olhómetro, desenhado no papel.
Estou profundamente convencida disso.

3:48 da tarde  
Blogger Eurydice said...

Texto delicioso!...

Penso que tudo aquilo está inscrito no generalizado preconceito de que em Portugal é tudo sol e mais sol.

Que o arquitecto o tivesse, posso compreender.
Agora quem sancionou o projecto!... Não seria PORTUGUÊS?... Não conheceria as flutuações do nosso clima? Nunca terá andado à CHUVA na sua terra??

5:03 da tarde  
Blogger Cláudia [ACV] said...

Em tempos das minhas viagens diárias pela lezíria arranjei ali uma jóia de uma otite :)

5:49 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Eis o grande resultado do trabalho do arquitonto!

E quem é que se lixa, quem é?!
'Nozes', pois então!

6:32 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Belo texto. Pena que não seja ficção.
TeB

9:55 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

IMPENSADO SAID:

Ando a acumular impropérios sobre a "Gare do "Oriente" desde há uns anos. Alguns deles são excertos de conversas imaginárias com o «a besta do arquitecto», em dias ventosos e chuvosos de Inverno, em que, triunfante, lhe pergunto, enquanto ele tirita de frio, se acha que Lisboa, a atlântica Lisboa, é Sevilha. «É? É? Acha que é???» O homem já me pediu desculpa, de joelhos, e indemnizou-me regiamente pela perda de um chapéu de chuva que naquelas paragens se evolou na atmosfera revolta.
Prefiro Santa Apolónia, mas está tão triste a velha estação...
http://www.impensavel.blogspot.com/

11:42 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Costumo viajar regularmente no Alfa até ao Porto e tenho poucas ou nenhumas razões de queixa, pelo que discordo em absoluto do texto publicado. Mas que a Gare o Oriente é um monstrozinho desconfortável e desadequado ao nosso clima, lá isso é. E que Santa Apolónia bem merecia um «lifting» a sério, também.

12:09 da manhã  
Blogger M Isabel G said...

Olá Eurico,
À semelhança do Ricardo GArcia, farto-me de levar com encontrões com as entradas nas carrugens. A começar por mim, que me engano quase sempre :)
A última vez então, foi um caos! Eu e os outros :)
Mas do ALfa não tenho muita experiência.

1:25 da manhã  
Blogger M Isabel G said...

A expressão "wrestling rodoviário na Auto-Estrada do Norte" está muito bem apanhada.

Olá Ana Cláudia,
Aquilo é mau, muito mau e santa Apolónia um atraso de vida.

Cinderela,
Acho que o Senhor arquitecto pouco se importou com as otites da Ana Cláudia nem com as chicotadas eólicas do Ricardo Garcia (que não conheço, obviamente)

1:30 da manhã  

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