quinta-feira, março 22

Do que ficou






Um delírio de amêndoas da Páscoa invade os supermercados. Quanto maiores, maior a mancha de cor à nossa escolha. Todos os anos há uma invenção mais sofisticada do que no ano anterior: alguém que me explique a relação entre um gigante ovo de Páscoa e bonés com emblemas de clubes desportivos. Pois lá estão eles, dois em um a preços módicos. Nem a Páscoa se livra de futebóis.
De resto, há géneros em todas as cores, gostos e bolsas. Habituada às clássicas francesas a peso, estas coisas confundem-me. Uma amêndoa é uma amêndoa, não é uma caixa de smarties. Depois lá estão os saquinhos engalanados com sortidos com licores, amêndoins, pinhões e outras variedades que desconheço.
Nos ovos de chocolate é um corropio. À semelhança do bolo-rei, o gozo era partir aquilo rapidamente para encontrar a surpresa. Uma treta, a maioria das vezes, mas tinha piada.
Numa época praticamente pré-histórica, em que a Páscoa era para ser levada a sério como celebração mais importante da religião católica, e falo em meios rurais, recordo bem a azáfama daqueles dias. Havia esmero, aprumo e brio nas limpezas, nas casas, nas igrejas e nas cozinhas. Vestiam-se vestidos novos, tiravam-se os linhos, as colchas e havia sempre flores. A Quaresma era rigorosa, soturna e respeitada. Aliás, um pouco como os indígenas.
Havia amêndoas para todos mesmo para quem não podia. A vizinhança, a amizade e a devoção das festas serviam-se em pacotinhos cinzentos comprados avulso.
Os mais abastados traziam-nas da capital, escolhidas na Baixa, de boa qualidade mas sem muita variedade. Havia sempre umas primas que traziam de outras bandas umas amêndoas estranhas, mas confesso que nunca as provei. As crianças coleccionavam pequenos coelho, cestos e ovos com recheio de licor. Nunca gostei de tal coisa, mas os sacos eram uma surpresa e dava para trocar. Perguntam-me se era licor de cereja, coisas de agora. Não. Era pegajoso e sujava o vestido. É do que me lembro.
Voltando à grande superfície com as mil e uma fantasias de Páscoa, desisti de procurar. Desconfio que ainda lá estaria a esta hora.
(Dedicado à minha irmã Maria Teresa)

4 Comments:

Blogger JC said...

Por cá a "coisa" passava-se assim: circo no coliseu, com os primos e uma tia solteira que nos levava a todas as "companhias" que por lá passavam e ainda às peças de teatro infantil, seguido de lanche na Confeitaria Nacional com compra de amendoas para levar para casa. Como nunca fui mtº dessa coisa de doces (excepto os pasteis de Belém), escolhia as com recheio de licor, que tinham a forma de ervilhas, feijões, tremoços e algumas ainda mais sofisticadas de que não me lembro exactamente o formato. Claro que não era para comer, mas apenas porque achava graça. Alguém as comia, depois, lá por casa... E havia alguém de Chaves com quem o meu pai tinha um relacionamento profissional que todos os anos mandava um folar.Nunca terá sabido o embaraço que a nós, alfacinhas de gema do lado da minha mãe e estrangeiros do lado do pai, nos causava, pois ninguém gostava do dito folar para o qual olhávamos com ar desconfiado e, talvez, o pensamento: que pena estragar-se...

11:17 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

A diferença teima em instalar-se, perdendo-se o conceito, os sabores, o colorido e as sensações.

Eu nunca gostei das iguarias da Páscoa, mas gostava do ambiente que se criava porque era mais uma desculpa para sentir novas sensações e novas aventuras.

6:59 da tarde  
Blogger M Isabel G said...

Querida irmã
O comentário ficou comigo

1:40 da manhã  
Blogger Eurydice said...

Ah, o folar de Chaves!... Descobri-o há relativamente pouco tempo, mas achei-o digno dos deuses!... :)

E as filhós da Beira, aquelas muito amarelas das dúzias de ovos que levavam, de bordos grossos, tendidas com as duas mãos, macias e elásticas, fáceis de estender e de fritar no azeite da panela? Uma pessoa sentava-se à lareira, com um pano de estopa branca nos joelhos, e ia esticando e fritando, usando um enorme garfo para as virar...

Que saudades da visita "do Senhor" que obrigava a ter laranjas e amêndoas em cima de uma toalha rica, na mesa da sala, ornamentada com muitas flores e alecrim. Tal como a porta de entrada e as ruas da aldeia. E as vozes agudas dos cânticos, a sineta que anunciava a chegada da Cruz, e os gritos piedosos num latim peculiar, proclamando "SURRECO! SURRECO!" para glorificar a ressureição de Cristo. :)

E, por trás disto tudo, a figura tutelar da minha avó, presidindo a todos os preparativos, serena e sábia, de cujas mãos saiam obras-primas do forno e do fogão. Que saudades!

7:07 da tarde  

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