quarta-feira, novembro 1

Da ocultação

Estive a ler com maior atenção o artigo do Pe.Anselmo Borges sobre a morte. Trata-se de uma abordagem principalmente antropológica sem remeter o tema para uma dimensão teológica, o que também me interessa. Escreve o autor que "Para perceber uma sociedade, talvez mais importante do que saber como é que nela se vive é saber como é que nela se morre e se tratam os mortos". Tem razão quando afirma que a morte existe clandestinamente porque silenciada. E anti-social, acrescento eu. Não se expõem as feridas, não se mostra luto, esconde-se o sofrimento pelo pudor da compaixão. Em suma, a morte é uma coisa socialmente maçadora: "É de mau tom e mau gosto deixar aflorar esse tema." Reconheço que seja por simpatia, por gentileza ou até por amizade que se pergunte a alguém a quem morreu alguém que se ama, (odiosa palavra, essa de falecer) "como te sentes?" Naturalmente não se esperam longas respostas sobre estados de alma, tristeza, saudade ou perca. Não há tempo. Não é para isso que se pergunta. Pelo contrário, as respostas são quase sempre vagas, com receio de incomodar, uma duas palavras na esfera do privado, mas quase nunca no domínio do íntimo. O sofrimento pode ser socialmente estigmatizante. Fica mal numa sala. O preto é chic. O luto não está na moda.
Hoje ouvi desejar um bom feriado a alguém com muitas mortes na alma. Foi por simpatia, decerto. Mas não consegui deixar de sentir qualquer coisa de errado. Um bom feriado?
Afirma o Pe. Anselmo :"Numa sociedade para a qual a morte é tabu permite-se que os mortos visitem os vivos dois dias no ano: 1 e 2 de Novembro. Os cemitérios enchem-se e a morte e os mortos abrem à transcendência, porque obrigam a pensar". Talvez. Estamos todos ali no mesmo chão, sem nos olharmos com estranheza, sem a tirania da piedade nem a ocultação da alma. Somos todos iguais. Só as flores serão diferente.

11 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Gostei deste seu post. Só queria chamar-lhe a atenção para o facto de o feriado ser o dia de todos os santos, e só o dia dois ser dia de finados. Já nem isso se sabe... Por isso, bom feriado! E um dia de finados com boas memórias e reflexões.

1:46 da manhã  
Blogger M Isabel G said...

Obrigada
Eu sei que o feriado é o DIa de Todos os Santos. Talvez me tenha explicado mal. Queira desculpar-me mas prefiro não me alongar mais.
Agradeço-lhe as suas palavras

1:58 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Muito interessante a sua abordagem ao 'cemitério que todos nós transportamos', como dizia Cruzeiro Seixas

7:41 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Excelente. Identifiquei-me.

Permita-me acrescentar a minha convicção, na esfera do pessoal, do íntimo:

Eu deixei os meus mortos seguirem a sua viagem pela Luz, pelo seu caminho. Porque acredito que esta vida é apenas uma das muitas que já vivi. É uma passagem, uma aprendizagem, uma tentativa de evolução.

P.S.: hoje estou a conseguir comentar. Ou é o blogger que está mais decente, ou é um dos santos que hoje se festeja que me está a ajudar.

12:21 da tarde  
Blogger Cláudia [ACV] said...

O Sr. Anónimo, levando à letra o carisma deste feriado, talvez ignore que é neste mesmo dia, véspera de finados, que a maior parte de nós pode dedicar um pouco do seu tempo ao culto dos antepassados, mais que no dia de calendário que lhe é dedicado, e que, ao contrário do que se passa noutros países (estou-me a lembrar da Bélgica,por exemplo), não é feriado também.
Parece-me que é por isso que a sentida evocação de Miss Pearls acontece, não por acaso, nem por ignorância, neste dia.

Um abraço,

3:30 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Li há meses Morte e Luto Através das Culturas. Interessantíssimo e no qual se reflecte sobre muito do que foi aqui escrito.

8:29 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Sinto-me muito próxima deste seu post, muito sentido. Tem razão, o luto não está na moda, não há tempo nem compreensão para o sofrimento.

9:10 da tarde  
Blogger M Isabel G said...

António
"Eu deixei os meus mortos seguirem a sua viagem pela Luz, pelo seu caminho. Porque acredito que esta vida é apenas uma das muitas que já vivi. É uma passagem, uma aprendizagem, uma tentativa de evolução".
Como católica (esforçada) vejo a morte de forma bastante diferente, o que é normal.Obrigada pelas suas palavras. É muito, muito simpático.

Querida Ana,
Lá na minha aldeia a romaria ao cemitério é hoje, Feriado, porque amanhã é dia de trabalho. No dia de Finados, quando havia gente, havia uma missa ás 5 da manhã antes de sairem para o campo.

O S já se decidiu ir?
Ligo-te amanhã. Estou cansada agora.Um beijinho.

Velvesatine, Talvez seja essa uma das obras que o Pe Anselmo se baseou.

Ariel,
Obrigada

10:29 da tarde  
Blogger JCA said...

Cara Miss

Excelente o seu post,não sei se viu uma recente exposição sobre a morte no museu da água,não gostei em especial, porque o tema queiramos ou não, assobiamos um pouco para o lado quando falamos nele,mas sabe apreendi uma coisa,que parece obvia:a morte é apenas uma etape que temos que passar por ela obrigatoriamente,só espero que seja com dignidade.

12:54 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Bonito o seu post, e bonito o artigo do Pe Anselmo Borges. Recentemente morreram três pessoas que eram muito importantes para amigas minhas. E sinto o coração mais apertado por elas. E compreendo e respeito o seguir com a vida para a frente sem lamentações de uma, a vontade de falar sobre o assunto de outra, e o recolhimento e silêncio absoluto a que se dedicou a terceira. Cada pessoa tem a sua forma de reagir, o que é absolutamente legítimo.
Acho que a reacção de fingir que não se passou nada, por parte de quem rodeia quem sofreu uma perda significativa, não tem só a ver com a morte. Tem sobretudo a ver com uma incapacidade muito grande que as pessoas têm de lidar com o sofrimento dos outros, qualquer sofrimento, e com o seu eventual descontrolo emocional. Muitas pessoas passam muito tempo a fingir e a fugir dos seus próprios sentimentos, a viver de forma o mais rápida e superficial possível, controlando qualquer ameaça de descontrolo. E qualquer demonstração de fragilidade, de grande tristeza, de comoção, por parte dos outros, pode fazer ruir o que deu tanto trabalho a preservar. E quanto aos rituais, isso implica uma pausa. E parar é perder balanço...E quem sofre não quer sofrer mais com a inconveniência dos outros, e desiste de mostrar o que lhe vai na alma.
E tudo isso também é legítimo, mas é triste, e é poucochinho.
Filipa

4:17 da tarde  
Blogger Isabela Figueiredo said...

Anselmo Borges foi meu professor em Tomar, no Colégio Nun' Álvares. Era genial. E levava uma sapato de cada qualidade para as aulas, e uma meia de cada cor. Isto é verídico, sobretudo a parte em que ele era genial. Estava muito acima daquela malta de secundário que não podia compreendê-lo. E éramos novos. Eu tinha muito medo dele. Era sarcástico, mandava bocas mortais. Era genial. consigo vê-no em pé no estrado, falando, enquanto eu me escondia cá atrás, fascinada, procurando que ninguém notasse que eu existia. Bons tempos, os dessas aulas.

12:18 da manhã  

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