quarta-feira, outubro 11

Quem vê caras....

Não fosse a excelente prosa do Miguel, e este seria positivamente um "post falado".
Já não falo de corações que as caras a esses não os veêm de tão insondáveis. Então aqui vai um post a meias, a meu pedido. Escrevemos sobre caras e pessoas. Ou melhor, o Miguel escreve, eu faço que escrevo. Mero exercício de ficção e uma apreciação feita de enganos, certamente. Mas lá está, isto é um blog e nada mais que um blog.
"Dizia há anos Alçada Baptista, com muita piada, que cada qual é, após os 30 anos de idade, responsável pela cara que exibe. Haverá, decerto, uma curta margem de erro ou exagero na afirmação. David Hume, uma das cabeças mais brilhantes do século XVIII, espantava quem dele se acercasse pela extrema feiúra e pela expressão quase alvar: uma boca em forma de melancia talhada, sempre aberta de espanto, comissuras onde se acumulava baba, olhos esbugalhados e faces retalhadas pela varíola. Mas a excepção não faz a regra. Olhando para um daqueles impiedosos retratos que Goya pintou para a família real espanhola, ali vemos o catálogo das variações que o carácter assume na mesma árvore de pedigree: moleza, concupiscência, brutalidade, loucura, deslumbramento, vazio interior. Só se salvam as crianças, sempre bonitas por que inconscientes. A caricatura, que acentua os traços do ridículo, é o veículo por excelência da retratação.
Em Daumier, esse génio implacável, deputados, juízes, prelados, capitalistas e povo miúdo disputam o primeiro lugar na obscena teratologia do horror. Cada um mais repelente que o outro. Se nuns predomina a crueldade, noutros a gula e a depravação assumem a dianteira, para noutros, ainda, a hipocrisia, a dissimulação e a doença da santidade tomarem o controlo da expressão.
Olhemos para uma fotografia. Fitemos os olhos. Está lá tudo. Pálpebras carnudas, olhar mortiço (ou bovino), inacção dubitativa, moleza orgulhosa. Olhos profundos, grandes e caídos, intensa actividade interior. Olhar espantado, desorbitado, loucura, luxúria, desprezo por tudo. Depois, a posição do queixo. Um queixo recuado, cobardia, inibição, dentadas silenciosas, traição potencial."(Miguel)
Gravura María Luisa de Parma - Goya
Há uns dias, numa cidade de província, entrei numa perfumaria daquelas com um balcão à antiga, com os perfumes e cremes ao alcance dos olhos e não das mãos (uma raridade), com empregadas à antiga, mas em tudo o resto semelhante às modernas. (Por falar nisso, desconfio que as águas de colónias avulsas, vendidas ao litro, dentro de uns frascos lindos, já só se vendem em drogarias.) Quando digo empregadas à antiga falo de gente solícita que sabe do que fala, aconselha com bom senso, sugere com discrição, lisonjeia com sobriedade e enaltece com critério. Tratamento aconselhável para dias de bad mood, cabelo pingão, chatices no emprego, problemas em casa, fuga à rotina, pagamento de impostos, desgosto de amor ou simplesmente em dia não.
Quando ouvi uma das empregadas, senhora perto da reforma, perguntar em que posso ajudá-la Madame, instintivamente olhei à volta para saber com quem estaria a falar. Ai, que eu era a Madame. Eu e as outras duas senhoras que entraram depois de mim, enquanto me entretinha a descobrir qual o fresquinho mais milagroso. Éramos todas madames.
Para esta empregada de escola antiga, na sua loja não havia diferenças: caras, corações, ostentações, dinheiro, falta de dinheiro, arrogâncias, simplicidade, desprezo, educação, gentileza, ignorância, rudeza, a tudo era imune e distante. Eram todas madames.

3 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Um post 5 estrelas, desculpe a vulgaridade da expressão. É que também já me vou esquecendo do tratamento de "madame" e não é só nas lojas... Já só quando vou a Paris. Quanto à duquesa de Parma de Goya, um "must".

3:08 da tarde  
Blogger JC said...

1. A minha avó, francesa de Cassis e residente em Portugal desde os seus vinte e picos,com respectivo "ar" e pronúncia para não enganar ninguém,era sempre tratada nas lojas por "madame". E eu não tinha nome, claro, era o neto da "madame".
2: Não partilho do seu entusiasmo pelo Rui Ramos -se é do melhor que a Universidade portuguesa tem, mal irá - mas quanto a Adriano Moreira é de facto um senhor, embora tenha sido das vezes que o achei menos entusiasmante. Uma vez, era ele deputado, fiquei no carro durante cerca de 1/2 hora à porta de casa a ouvi-lo na telefonia, durante um discurso na AR. É das memórias que vou guardar para sempre. Esse sim, honra a Universidade portuguesa!

4:12 da tarde  
Blogger M Isabel G said...

Obrigada Ariel :)

JC:
Foi o Miguel que falou do Prof Rui Ramos. Mas já agora, também tenho admiração por ele.

5:56 da tarde  

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