quinta-feira, novembro 17

Nunca digas nunca

Bobbie Gentry - I'll never fall in love again

Há muito que se lhe não conhecia um namorado, uma paixão, um devaneio ou um desvario. Se ela tinha dates, affairs, ou afins, era segredo bem guardado. Que nunca abria a boca para falar nesses assuntos íntimos, como lhes chamava, era uma grande verdade. A gente bem tentava sacar um nome, um caso, uma paixoneta, um béguin, mas nem uma palavra, comoção ou brilhozinho nos olhos. 
 De resto, parecia-nos agora mais moderna com a idade, mais ousada no vestir, mas também mais apaziguada e sorridente. Se a querem ver irritada, considerem-na uma "mulher interessante" e toda a artilharia pesada do insulto silencioso desaba sobre vós. Julgo que tinha encontrado pequenas alegrias com a felicidade das amigas, poucas mas boas, e o tempo tornara-a totalmente implacável com o lambe-botismo, o arrivismo e a deslealdade. Queixa-se das mazelas da idade (mas disso nos queixamos todas), das rugas que foram aparecendo, dos cabelos brancos mais que muitos e da falta de energia (bem sei o que é isso).
Depois da fase apocalíptica, considerava-se integrada, conformada e arrumada. Por gentileza, todos a contrariavam;  que disparate, estava na mesma (mentira), agora é que estás bem (hipocrisia), quem sabe as coisas boas que estão para vir (e as más, por essa ordem de ideias).
Mais ou menos conciliada com o passado, agradava-lhe ver fotografias antigas que ia comentando entre entres dentes com um sorriso ou com uma raivinha que ainda não conseguia esconder: que nervos, tanto disparate, que figura, onde tinha a cabeça, boas pernas, soutien errado.
Sempre que viajávamos no carro dela encontravamos alguns dos cds do costume, os clássicos, um ou outro modernaço, o Bach do seu coração, músicas que tinham signficados especiais, mas curiosamente nunca lhe detectei ponta de nostalgia romântica. Como mulher de hábitos, acostumei-me a vê-la comer com parcimónia e moderação (uma vida a lutar contra os genes deixa as suas marcas), mas gostava do seu gin, da cerveja ao final da tarde. Estava arrumada, dizia ela, mas não estúpida. 
Viu casar as amigas, calou as confidências, ouviu-nos os delírios, acarinhou-lhes os filhos, acolheu-as nos divórcios, conheceu-lhes amores novos, em tudo esteve presente sem recriminações nem hesitações. Porém, naquela tarde, achei-a diferente. Não sei se seria de um novo modelo de vestido que agora ousava vestir, se pelo olhar. A verdade é que estava diferente. Quando pediu uma tarte com gelado achei curioso, quando sorriu para a mensagem do telemóvel, pensei que ali havia caso: sempre as facturas electrónicas, as promoções e as ofertas de novos serviços, suspirou, mas a mim não me enganou.
Tocou o telefone e pelo olhar e sorriso, percebia-se que não se tratava das habituais chamadas da mãe, amigas ou irmãs. Balbuciava palavras curtas, mais trejeitos que sons, trocando silêncios de cumplicidade. Fingindo-me desinteressada, pus-me à escuta na despedida: "Às oito horas está óptimo. Na tua casa ou na minha?"
Estou mortinha por voltar a encontrá-la.  De preferência com aquele vestido vermelho que lhe ficava tão bem.
Adaptação de um texto ecrito há alguns anos
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