sábado, janeiro 29

Visita (IV)


Sound of Music - Climb every mountain

Corria aquela ano maldito de 1938. Muito tempo antes das vagas de emigração para o Brasil, França e dos jovens do Erasmus que vão e não voltam, fomos todos apanhados em cheio pela Anschluss. O presidente do Conselho haveria de decretar a neutralidade do nosso país, mas as notícias demoravam a chegar ao alto da serra, ainda longe de Salzburgo onde viviamos, um sítio maravilhoso, diga-se, de fazer inveja à menina Heidi, uma petiza risonha dos alpes suiços.
No meio de tanta beleza e isolamento, a única vizinhaça era uma villa que víamos ao longe e onde raramente entrávamos: uma casa maravilhosa com lindos jardins, fontes e onde viviam 7 meninos, um senhor do exército, uma nanny a precisar de um corte de cabelo mais feminino e um ou outro empregado. Como sabem, por aqueles lados não se pratica o desporto nacional da intromissão na vida alheia, pelo que pouco mais sabiamos sobre a família.
Por mim falo, mas havia dias em que aquela gente me irritava muito, todo o dia a cantar serra abaixo, serra acima. De tanto os ouvir, cheguei mesmo a aprender a tocar xilofone : do re mi do mi do mi mi... e por aí em diante. Constava que a jovem governanta tinha vivido num convento de onde foi aconselhada a sair e a fazer-se à vida, exaustas que estavam as freiras de tanta música. A moça pouca vocação religiosa deveria aparentar e dava-se mal em clausura, onde a sua voz de rouxinol ecoava de manhã à noite, abrindo assim caminho para as Whoopi Goldberg do futuro.
Apesar de serem muitas crianças, eram pouco ruidosos. Talvez o capitão lhes impusesse uma rigidez e disciplina militar, sou eu a imaginar, mas com a chegada da menina Maria, tudo mudou: sacavam das guitarras e dos ferrinhos e todo santo dia cantavam Do-re-mi, My favourite things, entre outras dezenas de canções. Cantavam muito bem, essa era a verdade; músicas muito mais alegres dos que as enfadonhas canções portuguesas de faca e alguidar ou desgosto e ciúme (ou vice-versa). The hills were always alive with the sound of music
Um dia houve uma grande festa na villa. Por nós passou uma mulher loura deslumbrante, que vim a saber ser a noiva do capitão. Era muito gira, mas feita com os invasores e o pai das crianças já estava embeiçado pela governanta insonsa mas boazinha com quem acabaria mais tarde por casar, a contento de todos.
E a história termina aqui: nós voltámos para esta terra duma austera, apagada e vil tristeza e a simpática família numerosa foi cantar para outra freguesia, onde o capitão não tinha que fazer a Deutscher Gruß.
Mas as canções andam por aí.
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