quarta-feira, fevereiro 10

Manobras

"Somos doces, mas não somos delicados. Trata-se mesmo de um traço civilizacional do povo português", afirmou há uns tempos o filósofo José Gil na televisão. De facto, não somos nada delicados; pelo contrário, tratamo-nos todos muito mal e desrespeitamos o espaço público que partilhamos. Uma das formas mais rasteiras e incivilizadas a que assisto quase diariamente, é a chamada golpada, ou seja, quando o idiota se aproxima pela direita, pela esquerda ou pela rectaguarda, sempre que seja possível o golpe para passar os outros ou chegar-se mais à frente nas saídas resguardadas por traços contínuos duplos. Barricado na viatura, deve rir-se das manobras que julga inteligentes, de alto gabarito, do fantástico desempenho que o há-de levar mais longe, mais rápido, mais cedo que os outros, os tolos alinhados à espera de vez. Tipos a quem chamam "assertivos", penso eu.
Também os vejo muito nas laterais de emergência, certos de que vale a pena arricar, não há lei nem ordem, nem ambulância à vista que os impeça de mais uma esperteza ardilosa, da golpada bem sucedida. A sorte protege os temerários, enquanto avança corajoso, sozinho ou mesmo acompanhado pelo kit da felicidade, deixando para trás os tipos que não arriscam, logo não petiscam. Devem ser os mesmos anjinhos que ele vê sair dos parques de estacionamento a preços milionários, gente pouco preparada para galgar a calçada portuguesa ou objectores de consciência da 2ª fila, cobardolas, havia de ser com ele, um profissional da escalada nos passeios públicos à borla. Podemos constatar o que se passa nas filas lentas e chatas, quando alguém tem a ousadia do primeiro golpe, da fuga para a frente ou pelos lados, é vê-los sair, um ou dois a medo, logo seguidos de muitos, que não querem ficar para trás, não hão-de querer ser toscos, os panhonhas que se deixem ficar, quem não arrisca não petisca, tempo é dinheiro, não são menos que os outros, candeia que vai à frente é que alumia. São assim as viagens pelas vias urbanas, ninguém mas contou: vejo-os todos os dias de manhã ou ao final da tarde, os tipos muito mais espertos que eu, os gajos ou as gajas das golpadas. Os que se safam melhor, mais cedo, mais rápido, limpinho. Também se podem ver nas filas únicas só com uma caixa aberta. Assim que outra entra ao serviço, saltam todos dos últimos lugares para a frente do pelotão, indiferentes a quem chegou mais cedo. Mexam as pernas, os parolos. E que dizer dos incautos que, por desconhecimento ou falta de informação, não tiram de imediato as senhas de atendimento? Nada a fazer, tarde demais: tornam-se invisíveis aos olhos de quem chega depois, que ninguém tem culpa que não puxassem logo do papelinho com número. A lei é a lei e a ordem é muito bonita, basta olhar fixamente para os dígitos no écran. Se virem uma madura condenada a esperar por vez ou a ficar para trás na filas de trânsito, da farmácia ou das bomba de gasolina, posso ser eu. Video: The Sting (A golpada)

5 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Caríssima vizinha,

Pode ser que nos encontre-mos no fim de alguma fila aqui no Bairro, Penso exactamente da mesma forma e divirto-me muitas vezes a fazer - discretamente se possível - a cama a chicos-espertos.

Adorei o vídeo do Duarte Mendes que colocou, fez-me recordar a minha meninice - colheita de 66.

Respeitosos cumprimentos a todos,

8:59 da manhã  
Blogger LUIS BARATA said...

Esquecem-se os "golpistas" que se tiverem sorte também podem vir a ser os maduros "golpeados"...

10:50 da manhã  
Blogger M Isabel G said...

Obrigada.
Não se deve ler este post literalmente:O):)

12:00 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

A mim o que me faz espécie é alguém querer saltar para a frente do Plutão. Ainda por cima agora que parece que já nem é planeta à séria...

12:06 da tarde  
Blogger M Isabel G said...

Sou uma estúpida. Já corrigi.Obrigada

12:17 da tarde  

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