Naquela tarde
Não se lhe conhecia um namorado, uma paixão, um devaneio ou um desvario. Via-a habitualmente com a roupa entre o clássico e o antiquado e adivinhava-lhe os papelotes no cabelo na hora de dormir. Os sapatos de tacão médio, com um modelo que há muito deixou de o ser e o cabelo com um corte valha-nos Deus, arruinavam qualquer ideia de sensualidade. Sempre que viajávamos no carro dela encontravámos os cds do costume, um Phil Collins lacrimejante, um Eros Ramazzotti compungido e um Alejandro Sanz saudoso, mas curiosamente nunca lhe detectei ponta de nostalgia romântica. Como mulher de hábitos, acostumei-me a vê-la comer uma fatia de tarte de maçã com duas bolas de gelado e um chá com dois pacotes de açucar. Achei sempre um exagero, mas ela sorria à medida que ia saboreando e também por isso a admirava.
Viu casar as amigas, calou as confidências, ouviu-nos os delírios, acarinhou-lhes os filhos, acolheu-as nos divórcios, conheceu-lhes amores novos, em tudo esteve presente sem recriminações nem hesitações. Porém, naquela tarde, achei-a diferente. Não sei se seria pela camisa um nadinha mais desapertada, se pelo olhar. A verdade é que estava diferente. Quando pediu uma tarte sem gelado achei curioso. Quando evitou o açucar no chá, pensei que ali havia caso.
Tocou o telefone e não pude deixar de ficar atenta (ora eu). Atendeu, e pelo olhar e no sorriso, percebia-se que não se tratava das habituais chamadas da mãe, amigas ou irmãs. Balbuciava palavras curtas, mais trejeitos que sons, trocando silêncios de cumplicidade. Fingindo-me desinteressada, pus-me à escuta na despedida: "Às oito horas está óptimo. Na tua casa ou na minha?"
Foi o nosso último lanche. Casou num Domingo de calor com um vestido sem alças nem flor de laranjeira.
*
Texto já editado, dedicado a uma amiga, com os meus parabéns e toda a felicidade a que tem direito. Uma tarte com gelado para a mesa do canto, por favor!
3 Comments:
Muito bonito. Gostei imenso de ler.
Obrigada.
Coisa que não aconteceria comigo. Trair uma fatia de tarde, de preferência quentinha, e duas bolas de gelado, nunca! ;)
Obrigada :)
Ora Miss Pearls, que chatisse... Este rapaz que a lê habitualmente, completamente embrenhado na interessante e cativante narrativa e pumba! A sua amiga casa-se num Domingo de calor com um vestido sem alças nem flor de laranjeira e... e... e olhe, venha um gelado sem tarte para uma mesa qualquer, desde que seja de chocolate. :)
Belo texto.
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