segunda-feira, julho 9

Destinos

Era sempre a Natália a começar, como no dia das cerejas. Por mais que fizesse, nunca ele se atrevia a dar o primeiro passo. Só quando a rapariga quebrava a distância é que o coitado se abria de contentamento sem medida, tonto e novo como um cabrito. Mas nunca passava de coisas vagas e enternecidas. As palavras concretas magoavam-lhe a boca. - Ainda não lhe falaste em nada? – indagava a Teodósia, insofrida. - Não. Mas amanhã… - Ou quererás tu antes que eu lhe diga…? - Melhor fora! Valha-me deus! Isso era uma vergonha! Lá conhecer os pontos de honra de um homem, conhecia-os ele. A coragem é que chegava à altura do entendimento. Infelizmente, a vida não podia parar naquela lírica indecisão. Os meses passavam, as folhas caíam, e outros renovos vinham povoar a terra. - O João Neca esperou-me ontem à entrada do povo… - começou a Natália, à saída da missa. - Ah, sim, E depois? – Perguntou ele, a sentir o sangue subir-lhe à cara. - Pediu-me namora…- deixou ela cair com melancolia. Era justamente a altura de lhe dizer tudo, que a não podia tirar do pensamento, que só quando a levasse ao altar teria paz, que não seria nada no mundo sem os seus olhos verdes ao lodo. Mas ainda desta vez o ânimo lhe faltou. - Bem, tu é que vês…Ele não é mau rapaz… rasgava-lhe conscientemente o coração com semelhante aquiescência, porque tinha a a certeza que desde a primeira hora o amava também. A coragem é que não é capaz de outra coisa. - Eu queria lá um farçola daqueles! Estou muito bem assim… puras palavras de desespero. Tanto ela, que despeitada as dizia, como ele, que culpado as provocara, sabiam que eram o fruto de uma revolta impotente e destinada a morrer. A pobre Teodósia é que lutava às claras. E dias depois já estava a picar o filho: - Sabes o que disseram hoje na fonte? - Que a Natália tem namoro com o João Neca… - respondeu, vencido. (...)(...)
-- Casam-se para a semana… - ia esclarecendo a Teodósia, como um remorso. - Já sei. - O padre leu hoje os banhos… - Pois leu. Era uma resignação que quebrava a gente, e desarmava. E a velha não encontrava outro alívio para chorar. - Morria por ti! – disse-lhe uma manhã, que podia ser de felicidade para os três, e se transformava num pesadelo. Os sinos tocavam festivamente, ia por toda a aldeia um alvoroço de noivado, e só naquela casa a tristeza se aninhava sombria e desamparada a um canto. - Também eu gostava dela… Era outra vez Junho, as searas aloiravam já, e nas cerdeiras, polpudas, rijas, as cerejas tomavam uma cor avermelhada e levemente escarninha. Miguel Torga - "Novos Contos da Montanha" (a cerca de um mês do centenário do seu nascimento)

10 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Coisas sublimes. O Natal o Renovo. E os outros. Todos.

Costa

1:25 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Olá Carisíma,Miguel Torga é sem dúvida um dos meus autores de referência.Acho que devia ser mais estudado nas escolas,transmite muito do modo de ser e estar das gentes serranas e em particular da dureza mas tambem da bondade das gentes do Douro.
Para a semana, conto ir à sua casa museu em S.Martinho da Anta.
Cumprimentos.

:))))

ERGELA

1:50 da tarde  
Blogger M Isabel G said...

Pois a 12 de Agosto celebra-se o centenário do seu nascimento.

2:04 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

O prodígio de nos fazer sofrer juntamente com os personagens.

10:37 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Huummm... isto é blog de mulher feia...

6:04 da tarde  
Blogger M Isabel G said...

Primeiro dizem-me que não gostam d Torga, agora que sou uma mulher feia...
Este post só me tem dado desgostos :)

7:34 da tarde  
Blogger M Isabel G said...

Ergela,
Do TOrga gosto dos contos e da Criação do Mundo e pouco mais, mas é sem dúvida um escritor muito importante.
Abraço
MI

7:36 da tarde  
Blogger M Isabel G said...

"Anónimo said...
Huummm... isto é blog de mulher feia..."

Antes de me atirar da janela e morrer de curiosidade:
porque diz isso?
Pelo tema do conto? Hum...

7:38 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Concordo consigo,Miss Pearls.
Não gosto de todo o Torga:estes contos são,sem dúvida,o que tem de melhor;onde facilmente me comovo com esta gente.

11:51 da tarde  
Blogger Uptown said...

Vim aqui parar pela mão de uma amiga, cujo gosto literário me tem surpreendido e com o qual me identifico.
Deparo-me com um conto de Miguel Torga. Como muitos outros escritores, Torga encanta-me, delicia-me, fascina-me, assombra-me!
Deixo aqui um apelo a que não se esqueçam de "A casa grande de Romarigães", de "Volfrâmio", de "Bichos"!!!
São puro prazer literário!!!

9:50 da tarde  

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