Destinos
Era sempre a Natália a começar, como no dia das cerejas. Por mais que fizesse, nunca ele se atrevia a dar o primeiro passo. Só quando a rapariga quebrava a distância é que o coitado se abria de contentamento sem medida, tonto e novo como um cabrito. Mas nunca passava de coisas vagas e enternecidas. As palavras concretas magoavam-lhe a boca.
- Ainda não lhe falaste em nada? – indagava a Teodósia, insofrida.
- Não. Mas amanhã…
- Ou quererás tu antes que eu lhe diga…?
- Melhor fora! Valha-me deus! Isso era uma vergonha!
Lá conhecer os pontos de honra de um homem, conhecia-os ele. A coragem é que chegava à altura do entendimento.
Infelizmente, a vida não podia parar naquela lírica indecisão. Os meses passavam, as folhas caíam, e outros renovos vinham povoar a terra.
- O João Neca esperou-me ontem à entrada do povo… - começou a Natália, à saída da missa.
- Ah, sim, E depois? – Perguntou ele, a sentir o sangue subir-lhe à cara.
- Pediu-me namora…- deixou ela cair com melancolia.
Era justamente a altura de lhe dizer tudo, que a não podia tirar do pensamento, que só quando a levasse ao altar teria paz, que não seria nada no mundo sem os seus olhos verdes ao lodo. Mas ainda desta vez o ânimo lhe faltou.
- Bem, tu é que vês…Ele não é mau rapaz…
rasgava-lhe conscientemente o coração com semelhante aquiescência, porque tinha a a certeza que desde a primeira hora o amava também.
A coragem é que não é capaz de outra coisa.
- Eu queria lá um farçola daqueles! Estou muito bem assim…
puras palavras de desespero. Tanto ela, que despeitada as dizia, como ele, que culpado as provocara, sabiam que eram o fruto de uma revolta impotente e destinada a morrer.
A pobre Teodósia é que lutava às claras. E dias depois já estava a picar o filho:
- Sabes o que disseram hoje na fonte?
- Que a Natália tem namoro com o João Neca… - respondeu, vencido.
(...)(...)
-- Casam-se para a semana… - ia esclarecendo a Teodósia, como um remorso.
- Já sei.
- O padre leu hoje os banhos…
- Pois leu.
Era uma resignação que quebrava a gente, e desarmava. E a velha não encontrava outro alívio para chorar.
- Morria por ti! – disse-lhe uma manhã, que podia ser de felicidade para os três, e se transformava num pesadelo.
Os sinos tocavam festivamente, ia por toda a aldeia um alvoroço de noivado, e só naquela casa a tristeza se aninhava sombria e desamparada a um canto.
- Também eu gostava dela…
Era outra vez Junho, as searas aloiravam já, e nas cerdeiras, polpudas, rijas, as cerejas tomavam uma cor avermelhada e levemente escarninha.
Miguel Torga - "Novos Contos da Montanha" (a cerca de um mês do centenário do seu nascimento)
10 Comments:
Coisas sublimes. O Natal o Renovo. E os outros. Todos.
Costa
Olá Carisíma,Miguel Torga é sem dúvida um dos meus autores de referência.Acho que devia ser mais estudado nas escolas,transmite muito do modo de ser e estar das gentes serranas e em particular da dureza mas tambem da bondade das gentes do Douro.
Para a semana, conto ir à sua casa museu em S.Martinho da Anta.
Cumprimentos.
:))))
ERGELA
Pois a 12 de Agosto celebra-se o centenário do seu nascimento.
O prodígio de nos fazer sofrer juntamente com os personagens.
Huummm... isto é blog de mulher feia...
Primeiro dizem-me que não gostam d Torga, agora que sou uma mulher feia...
Este post só me tem dado desgostos :)
Ergela,
Do TOrga gosto dos contos e da Criação do Mundo e pouco mais, mas é sem dúvida um escritor muito importante.
Abraço
MI
"Anónimo said...
Huummm... isto é blog de mulher feia..."
Antes de me atirar da janela e morrer de curiosidade:
porque diz isso?
Pelo tema do conto? Hum...
Concordo consigo,Miss Pearls.
Não gosto de todo o Torga:estes contos são,sem dúvida,o que tem de melhor;onde facilmente me comovo com esta gente.
Vim aqui parar pela mão de uma amiga, cujo gosto literário me tem surpreendido e com o qual me identifico.
Deparo-me com um conto de Miguel Torga. Como muitos outros escritores, Torga encanta-me, delicia-me, fascina-me, assombra-me!
Deixo aqui um apelo a que não se esqueçam de "A casa grande de Romarigães", de "Volfrâmio", de "Bichos"!!!
São puro prazer literário!!!
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