"Refeição completa"
A crónica que eu gostaria de ter escrito:
"Refeição completa" por Ricardo Garcia
(Com os meus agradecimentos ao autor, de quem sou uma leitora habitual)
Público,4 de Fevereiro de 2007
Foi um dia alimentar, aquele. Começou na estação de São João do Estoril, onde eu aguardava pelo comboio das 10h08 para o Cais do Sodré. É a hora exacta em que, num café ali ao lado, a cozinha labora em grande actividade, no preparo de matéria mastigável para encher o bucho alheio.
O exaustor do estabelecimento deve estar estrategicamente posicionado de modo e induzir os humores da gastronomia local direito à plataforma da estação. Se dá fome? Não, meus amigos, não dá. O aroma é a fritos, um odor espesso do qual é impossível distinguir se o que está na frigideira são croquetes, rissóis, panados de porco ou os cabelos da cozinheira.
A minha larga experiência em transportes e gastronomia, em ambos os casos como utente diário, permite antever, só pelo cheiro, se o óleo está velho. Era este o caso naquele dia, e pensei em ir bater à porta do café, sugerindo a aquisição de fluido novo para frigir as iguarias.
Cogitei sobre as consequências e preferi ficar no meu canto. Entrei no comboio e a composição seguiu sacolejando sobre os carris. Começaram os telefonemas. Entre diversas conversas ao telemóvel, captei uma de interesse.
O protagonista era um senhor de meia-idade, barba branca aparada, fato e gravata, sobretudo. Por alguma razão, tinha jeito de corrector de seguros. Mas não perguntei para confirmar, não fosse ele querer-me impingir uma apólice. Corrector ou não, asseguro-vos que, em matéria de comida, o sujeito é previdente.
Ligou para o restaurante habitual:
- Bom-dia senhor Fernando. Então o que é que há hoje?
E perante a resposta do senhor Fernando:
- Hmmm...hmmmm... Bacalhau, é? Não, então pode ser faneca.
E assim ficou garantido que, naquele dia, ao chegar ao restaurante, o possível-corrector-de-seguros-de-barba-branca teria à sua espera uma bela pratada de fanecas fritas com arroz malandro.
O homem era daquelas pessoas para as quais a incerteza sobre o comer é insuportável. Quando desligou o telefone, apresentava o semblante tranquilo de quem acaba de resolver um problema, sorrindo placidamente ante a imagem virtual dos peixinhos no prato. Em termos laborais, seguramente a manhã de trabalho já estava perdida. Ansioso pelo repasto, o sujeito, no máximo, teria disponibilidade mental para lavar as mãos.
Ultrapassada as entradas e o prato principal, sentou-se ao meu lado, a partir de Oeiras, o digestivo. "Com licença", perguntou-me educadamente um passageiro magro, de cara vincada, que cheirava intensamente a álcool. Mas não era uma zurrapa qualquer, e sim puro malte escocês.
Em matéria de cheiros, devo dizer que os comboios da manhã são prolíferos. A gama é variada e vai desde o mais fino perfume a hálitos matinais facilmente classificáveis como armas de destruição maciça. Mas malte escocês, esse era novidade. E não era hálito, não, vinha do corpo, como se a personagem em causa tivesse caído num tonel de uísque. Uma espécie de Obélix, portanto, guardadas as devidas diferenças e proporções.
No fim da linha, quando as portas do comboio se abriram no Cais do Sodré, um homem com cara de louco, cabelos desgrenhados e roupas em desalinho forçou a entrada, contra a maré de gente que queria sair. Vinha com um charuto na boca e presenteou-me com uma generosa baforada.
Saí meio tonto, mas virtualmente estava de barriga cheia. Croquetes, fanecas, uísque e charuto, não é todos os dias que temos direito a uma refeição completa.
5 Comments:
Que horror!... Fiquei agoniada!...
Misspearls, prefiro de longe o seu estilo e os seus temas!... :)
Cara Miss Pearls,
Que me desculpe o cronista RG mas prefiro de longe os seus temas, o seu estilo, as suas histórias e estórias .. ;)
Abraço
Onceinawhile
Obrigada
Mas eu sou absolutamente fã deste jornalista com as "Crónicas da cidade".
Não me impressionou a crónica do Ricardo Garcia.
Nem na forma nem no conteúdo.
Aprecio mais o "estilo Miss Pearls", com a graciosidade de abordar o quotidiano do mundo urbano.
Nota :
Importa distinguir o "corrector" da correcção e o "corretor" da corretagem.
Parece que o Latim afinal faz muita falta...
foi de proprósito, arroba. as pessoas , aqui, gostam de errar.
Enviar um comentário
<< Home