1909
Corria o ano de 1909, no advento da Implantação da República. Em Fevereiro desse ano, Raul Proença escrevia assim sobre o Carnaval:
O Carnaval!
Lembramo-nos dele!(...)
Quando éramos pequenos, aqui há quinze ou dezasseis anos, como ele nos parecia divertido, sanguíneo, esplendoroso! Agora ouvia-se uma graça que nos irritava, logo era um dito picante que nos fazia cócegas, mais logo uma alusão de espírito, esfusiante e luminosa: enfim, com narizes de Cirano e espadalhões de D. Quixote, com batinas de tartufos ou com a barriga de Sancho Pança, era uma coisa com espírito, com alma, com vida - que raio!-que merecia o apoio de um sorriso e o aplauso de um gargalhada!
Em comparação com o do outro tempo, como é triste e enjoativo o Carnaval de agora!
Nem já sabemos rir.
Isto, hoje, é a Alegria com clorose e albuminúria, é o humorismo com pedra nos rins, é o Riso sofrendo de anemia e a exigir pílulas Pink e confortativos ferruginosos!
O nosso humor está a pedir casa de saúde e a nossa verve exige banhos do mar e sanatórios da montanha!
Ainda se vêem, sim, pierrots e chéchés, mas tudo se move aí pelas ruas como por um dever de ofício, uma mascarada é um serviço que se tem a fazer e já se vai a um baile com o mesmo enjoo e o mesmo fastio com que se vai para a repartição.
Neste momento passam máscaras, lá em baixo, mas tristes, graves, sorumbáticas, com a correcção de directores-gerais e o aplomb de conselheiros de Estado, marchando a passo lento, como Cristo para o Calvário (...)
E lá passa agora um homem de chifre, e de rabo muito comprido...Ih! pai do céu (...) Escolheu este dia de Entrudo para manifestar as virtudes domésticas e os altos feitos familiares(...).
Mais adiante, vai um escritor que se mascarou de mulher, e que só assim é verdadeiro, e mais além vemos um político que se veste de palhaço nestes três dias para fazer supor que o é menos nos outros dias do ano!(...)
São tristes as máscaras! Dá vontade de lhes esmurrar as ventas, os estafermos!(...)
Divertimo-nos mais nos outros 363 dias, vendo essas máscaras que para aí se movem, em diferentes travestis, mas todas visando ao mesmo fim: viver, vencer, à custa da vida e da felicidade dos outros.
Há o político que agita a sua apalavra de honra como um pierrot agita os seus guizos de Carnaval.
Há o ditador que se mascara de liberal, e o tirano que põe um travesti de democrata.
Há o espírito criativo que despeja uma bolsa numa manifestação exterior e que é incapaz de acudir à família necessitada que lhe mora ao pé da porta.
Há o homem generoso, grande patriota e grande católico, que nos fala constatemente em religião, deixando morrer à fome a pobre mãe velhinha.
Tudo isso é um Carnaval burlesco, infinitamente mais alegre e infinitamente mais proveitoso que esse carnaval que para aí se ostenta... (...)
E ao ver os gestos graves, medidos, calmos ou a indignação colérica e sombria dos políticos de ofício, ao vê-los no resto do ano levantar os braços, agitar os membros pedindo justiça, falando em liberdade, clamando por vingança, é então que nos faz vontade de dizer, como vós, os amigos do Carnaval:
- Bem te conheço, ó máscara, bem te conheço!
Raul Proença
[A Vanguarda. Lisboa. (22 Fev. 1909), p.1]
in:
O ano de 1909/[org.] Biblioteca Nacional de Portugal. - Lisboa: BNP, 2009
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