domingo, janeiro 24

Serve-se fria

Baisers volés (François Truffaut)-Que reste-t-il de nos amours

A criatura era um fenómeno (para não lhe chamar outra coisa). Sortuda, diziam uns, espertalhaça, acusavam outras com certo desprezo, mas era daquelas pessoas a quem ninguém ficava indiferente. Também eu tinha as minhas razões de queixa, desde aquele dia (tempos de adolescência), em que ela, por cima de um elegante metro e sessenta, e com aquele ar irritante e presunçoso, insinuou com falsa tristeza que por ser baixa e rechonchuda, dificilmente o M. alguma vez olharia para mim.

Recordo-me dela assim, a miúda gira que ficava com os melhores e os mais pretendidos da turma (e da escola), quase sempre aqueles de quem gostávamos. Começou cedo a partir corações, os deles e os delas, chorosas e ofendidas por sentirem rejeitadas.

O facto de eu não pertencer ao "núcleo duro" das miúdas giras dava-me algum distanciamento, o que me permitia analisar com maior objectividade os comportamentos do grupo ao qual também pertencia, sem no entanto rivalizar com nenhuma delas (começa na adolescência a crueldade para miúdas baixas e rechonchudas). Ainda hoje algumas dessas miúdas giras continuam a ser minhas amigas, se bem que uma ou outra tenham perdido a graça desses tempos.
Chamava-lhe a "mulher amiba": se lhe interessava, arranjava de manhã um arzinho sonso, vulnerável e queixoso (plano A). À noite, quem a visse, chamava-lhe Mata Hari, um plano B que ela desempenhava como ninguém, e assim a vi durante todo o tempo em que estivemos juntas no liceu.
Separámo-nos depois na Faculdade e na vida, apesar de ainda nos termos encontrado em casa de M. (o miúdo que nunca olharia para mim), com quem ela namorava nessa altura e a quem eu dava umas lições de Latim jurídico. Parece que o sujeito aprendeu bem a matéria; vi-o há dias numa conferência (ou seria na televisão?) a pronunciar correctamente e com propriedade as expressões latinas que lhe ensinei, mas muito chatinho, valha-me Deus.
Andou por uma universidade que desconheço e corriam rumores nos nossos mentideros mais íntimos, que se tinha safado bem, com o apoio científico de, pelo menos dois Assistentes, que lhe facultavam imensa bibliografia e dedicação. Certamente outro dos vários "mitos urbanos" à volta da criatura.
Por falar nisso, nunca lhe soube o nome completo. Era um ano mais velha, de outra turma, e sempre a tratei por um diminutivo simpático (beto, como agora se diz), como era aliás conhecida. Encontrei-a ontem no dentista e reconheci-a de imediato quando se levantou, depois de terem chamado da recepção: "Sra. D. Purificação de Jesus (xxx), gabinete 3".

1 Comments:

Blogger CPrice said...

a importância de se chamar .. :))

Beijinho *

3:23 da tarde  

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