sexta-feira, janeiro 22

"E se..."

Terminámos a noite a rir tanto pelo anedótico da história como pelos gins a mais que fomos consumindo. Eu sabia de tudo, fui testemunha e espectadora mais ou menos atenta (tinha mais que fazer e um namorado novo) do deslumbramento "iniciático" que a minha companheira, acabada de chegar à capital, levou a cabo durante esse longínquo 1º ano da era d.e.(depois da emancipação). Suponho que teríamos lido o mesmo: as biografias de Florence Nightingale a enfermeira valente, da heroína Joana d'Arc, da empreendedora Hellen Keller, da vida de fé de Santa Teresa de Ávila e da sábia Madame Curie. Assim que pôs os pés na Faculdade deram-lhe para as mãos umas fotocópias sobre cultura inglesa ou algo assim. Fascinada, entrou de cabeça nas vidas de Lydia Becker e Millicent Fawcett, duas sufragistas britânicas moderadas e sensatas. Mas foi com Emily Davison que lhe ganhou o gosto, digamos assim. Uma mulher que se atira para o cavalo do rei e que morre pela causa das sufragistas, uma mártir, haveria de tirar-lhe muitas horas de sono. Falava-me do activismo militante de Emmeline Pankhurst e de suas filhas, cuja desobediência civil lhes valeram a prisão por diversas vezes e de tantas outras mulheres que lutaram pelo direito ao voto, igualdade de direitos, etc. Recuou até ao Iluminiosmo, leu Rousseau e Locke, o século XIX trouxe-lhe Engels e Stuart Mill, descobriu Simone de Beauvoir, Betty Friedan e a republicana Maria Veleda. Entretanto, ia comendo. Lia pela noite dentro e comia. Eu chamava aquilo tudo, literatura de alto teor calórico.
A família, guardada em sossego lá longe, desconhecia estas aventuras literárias. Assegurada a honra e o bom nome (em alguns casos, a castidade) com regras e horas marcadas, estariam estas boas almas conservadoras a salvo de pensamentos libertários.
Numa deslocação a casa, ainda ousou mostrar um livreco sobre valores burgueses comprado numa promoção na Faculdade, mas assim que se apercebeu de que o blusão da Barbour (já apalavrado) se encontrava em risco, regressou por uns dias às páginas do Eça e aos braços do enigmático Darcy. Pelo menos, nada daquilo lhe estimulava a produção de adrenalina, logo, não comia. No final do ano lectivo, e depois de tanta leitura, com mais dez quilos em cima e dos lados, ainda não tinha visto "a luz", como eu costumava dizer. Com a chegada do Verão, perante um espelho cruel, devolveu os livros às bibliotecas e deu por encerrada a sua pequena marcha para o conhecimento. Tive pena. Gostava de a ouvir divagar sobre as mulheres que combatiam o estado patriarcal e das sociedades capitalistas que produziam desigualdades sexuais. "Imaginas como era isto por cá; um atraso de vida", indignava-se antes do Pai-Nosso à hora de adormecer. Ainda hoje se interroga "E se...". Propus um brinde à vida de Louise Michel e fomo-nos deitar.
NOTA: Texto ficcionado

5 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Locke? Stuart Mill? Uma universitária portuguesa não lê tal!
Lia?
Curiosidade de anónimo.

11:06 da tarde  
Blogger M Isabel G said...

Estou com dificuldades em perceber essa dúvida...

11:41 da tarde  
Anonymous blita said...

Que aconteceu aos quilos a mais? Perdi-me...

2:23 da tarde  
Blogger M Isabel G said...

AH! Deixou de comer tanto, fez dieta e emagreceu:)

2:25 da tarde  
Blogger M Isabel G said...

AH! E tornou-se uma estupenda conservadora (demasiado reacionária para o meu gosto):)

9:15 da tarde  

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