segunda-feira, fevereiro 1

Outras vidas

Costumávamos dizer que ela tinha um pouco de todas nós; espirituosa, inteligente, bonita, sensata, e cheia de mundo como a Lídia. Tinha lá as coisas dela, um feitiozinho danado e dizia-se de esquerda, o que nos dava sempre motivo para algumas gargalhadas, principalmente quando se escandalizava com o salário que pagava às funcionárias (que eu achava miserável) e com as (poucas) regalias laborais que elas usufruiam. Uma vez, dei um valente trambolhão no hall do prédio: a empregada de limpeza, sub-contratada pelo condomínio, tinha aquilo tudo cheio de sabão sem um aviso nas escadas. Quando me recompus (mais ou menos), a pobre, muito grávida, chorava que nem uma Madalena arrependida. Com a roupa encharcada, garanti-lhe que não havia problema nenhum, que ninguém precisava de saber. Nesse dia, para além das dores pelo corpo todo, ainda ouvi a Mariana zurzir-me aos ouvidos que devia ter feito queixa dela à empresa. Era escusado explicar-lhe que nunca mais a voltaria a ver por ali. Mas enfim, a Mariana tinha uma vida boa, endinheirada, um bom marido e filhos excelentes alunos (o kit da felicidade), ao contrário da Lídia, sempre ralada com as notas do miúdo, satisfeito com a mediania da classificação final. Contou-nos recentemente que, numa das reuniões de turma, várias professoras voltaram a falar do aproveitamento do miúdo, mas garantiram-lhe que raras vezes tinham encontrado uma criança tão feliz. Nunca mais se incomodou com a mediania do filho. Há uns meses, e sem que nada o fizesse prever, a Mariana informou-nos que se tinha apaixonado por outro homem e que ia deixar o marido (por esta ordem). Assim de repente. Foi o que fez, e até correu tudo dentro de alguma urbanidade, a bem da estabilidade das crianças, se bem que o marido tivesse passado um mau bocado, que aquilo dói pra caraças no corpo, na alma e no ego, arrasando as certezas que constituiam a sua vida.
Rei morto, rei posto, e acabámos por conviver com naturalidade com o actual marido da Mariana, um tipo simpático que percebia do PSI 20, das Grandes Opções do Plano e que lia jornais estrangeiros de economia & finanças, um mundo misterioso que rapidamente encantou a sua nova esposa.
Ontem, durante o concerto, reparei que Pedro (o rei posto), ora bocejava ora se remexia na cadeira. A certa altura, ouviram-se palmas entre dois andamentos, o que provocou um sururu entre as senhoras de casacos de vison e os cavalheiros engravatados. Coitado dele, corado na escuridão, com vontade de sumir e nós com ele. Tenho a certeza de que, no próximo mês, durante a nº 3 de Mahler, a Mariana não lhe tira as mãos de cima. NOTA: Para satisfação dos mais curiosos, que poderão querer saber o que aconteceu ao ex-marido da Mariana, e pelo que tenho ouvido, continua a saltar de mulher em mulher, pega uma, larga outra, cada vez mais novas, mais giras e mais acrobáticas, exibindo-as com gosto em locais da moda. Imagino que a música (e os movimentos) lá por casa seja outra e até eu me divirto (por vezes com alguma tristeza) a escrever estas tretas.

1 Comments:

Anonymous mike said...

Chame-lhe o que quiser, menos tretas. Se calhar o problema é meu, qu gosto de ler tretas destas.

9:52 da tarde  

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