Atrás da porta
"Não me fales de política nem de trabalho", exclamou ele com ar enfastiado assim que chegou a casa, atirando com o casaco e com as chaves para cima da primeira cadeira que encontrou. Ela hesitou entre um amuo (levezinho) e queixas domésticas de vária ordem, mas desistiu. Ao fim de tantos anos juntos, era inútil insistir com a pintura da cozinha ou a porta da arrecadação. Muito bom homem, mas completamente imprestável com tudo o que fosse bricolage, orçamentos ou tomadas de electricidade. Quando estava assim, era deixá-lo; já lhe conhecia o "modo astronauta", a precisar de tempo para a descompressão e com o qual ela pactuava de bom grado a bem da paz familiar e da sua própria tranquilidade, que é como quem diz "se vens aborrecido, prefiro estar calada para não me maçares".
Ouviu-o descer as escadas para falar com os miúdos, mas rapidamente regressou para verificar o correio. Não pôde deixar de sorrir com a rapidez com que foi corrido por lhes interromper as corridas; "cá em casa cada um precisa do seu tempo, está visto, mas o que ele não vê é o meu novo corte de cabelo, pensou vendo-se ao espelho. Se lhe perguntar alguma coisa, aposto que diz que fica muito bem". Viu-o mexer nos envelopes e abrir cartas, nada de especial. Seguiu-se uma espécie de monólogo, com frases a pedir a aprovação vinda da despensa, pensamentos óbvios sobre a inércia, a falta de decisões, de ideias, iniciativas e criatividade. Pois sim, que ele tinha toda a razão, mas o que querem para jantar?
- Qualquer coisa.
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