O ruído do nosso descontentamento
Em Janeiro deste ano, numa fantástica crónica sobre o ruído, António Barreto escrevia no Público:
"Terminadas as festas, nasce a esperança de reencontrar um pouco de silêncio e recato. Mas as ilusões morrem depressa. É possível que o volume de som baixe ligeiramente, mas a verdade é que o barulho se mantém. Veio para ficar. Há algumas décadas, instalou-se. Todos os anos aumenta. Todos os meses se diversifica. Todos os dias encontra novas formas de demonstração e uso. Entra-se num autocarro ou no comboio: há música. Sobe-se num elevador público, desce-se a um estacionamento subterrâneo: há música. Entra-se num avião ou numa sala de cinema: há música. Até em jardins públicos, a música brota dos altifalantes pendurados nas árvores. Música aparentemente doce, música aos berros, música estridente, música suave para atrair ao consumo, música agressiva para fazer as pessoas esquecer sabe-se lá bem o quê, música envolvente, mas música, sempre música. Música empacotada, música contínua sem fim, música indistinta, música feita de sortidos americanos e pots pourris das Caraíbas, música russa ao ritmo da Pigalle, mas música, sempre música. Telefona-se para um serviço, uma repartição, um banco: enquanto procuram ou se espera, enquanto se vai ver o dossier ou se pede esclarecimento ao computador, o incauto cliente leva com música. Fado ou guitarra. Orquestra ou bateria. Jazz ou valsa, tudo serve. Com relevo para os mais usados: As quatro estações, Eine kleine Nachtmusik e Para Elisa.
Nos restaurantes, cafés e bares, é um martírio. Televisões sempre abertas, aos berros, com desporto e telenovelas, talk shows ou a meteorologia. Rádios sempre no máximo, com relatos de futebol, notícias ou simplesmente música. (...) "
*
Foi neste texto que pensei quando entrei hoje no célebre Martinho da Arcada. Junto ao balcão, uma televisão debitava lá do alto a sessão parlamentar com um volume de som totalmente excessivo, que incomodava quem ali tinha entrado por uns momentos de tranquilidade, repouso, um café e um pastel de nata. Do altíssimo, ouviam-se vozes empolgadas sobre contratos de trabalho, enquanto no salão do lado pairava a sombra imperturbável de Pessoa, com um café, um cigarro e resmas de papel, assim como de tantos outros ilustres artistas que ali encontravam um ambiente que apreciavam.
Desse Martinho, dessa sala pequena com balcão e duas mesas, em nada se distingue de outras casas barulhentas onde o incómodo do ruído despacha rapidamente um café ou sumo e onde se engole um bolo em dois tempos. Eu só me incomodei à procura de outro balcão ou de outra mesa, de preferência sem televisão. É uma pena.
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