terça-feira, abril 22

Dobras da vida (2)

Recordo-me bem de quando ela começou a trabalhar. Com os filhos já criados, a quem ensinou diária e exigentemente a aritmética, ortografia, os rios, História, os caminhos de ferro, o ditado, a geometria, o corpo humano e a fotosíntese, com o jardim cultivado e a vida encaminhada, surge-lhe a oportunidade de "começar a trabalhar". Creio que por essa altura os tempos ainda não eram difíceis para um emprego, geralmente para o resto da vida. Na família não havia tradição de as mulheres trabalharem. Depois dos estudos, em colégios mais ou menos longe da casa dos pais, vinha o casamento ou raramente um curso superior. Ia cada um à sua vida. Uma correcção: todas trabalhavam (e muito), mas havia mulheres que tinham empregos, as solteiras. Mais tarde havia de surgir o Magistério Primário nas cidades do interior e muitas delas teriam o seu posto nalguma aldeia das redondezas ou mesmo na cidade. Voltando ao princípio, lembro-me bem de como os horários mudaram a vida da família, porém sem atribulações, correrias ou desleixos, que tudo era ao virar da esquina. Tudo acabaria por entrar nos eixos e parecendo que não, os filhos agradeciam aquelas horas de liberdade sem vigilância. E ela tinha um salário, férias pagas, um maior desafogo financeiro, geria o seu dinheiro, fazia as suas contas, as suas poupanças e era senhora dos seus projectos. Fez amigos novos e muitos conhecidos, conviveu noutros ambientes, alargou conhecimentos, lá tinha as suas ralações, mas também um carro novo. Trabalhou até a saúde lho permitir, em tempos novos de gente diferente, tempos sem altruísmo nem amizade, uma época bem diferente daquele primeiro dia em que saiu para trabalhar. Poderia ser a história de tantas mulheres, mas é sobretudo a história de uma vida de trabalho, afinal a vida de tantas de nós.
No caso dela, minha querida mãe, uma história que terminou cedo demais.
(Texto já editado)

6 Comments:

Blogger CPrice said...

texto já editado mas a minha comoção é hoje maior do que quando o li pela primeira vez .. depois tudo que li desde então nesta casa onde me sinto tão bem.
Abraço Miss Pearls *

3:32 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

De uma serenidade admirável e comovente este texto que nos fala dela, uma Senhora cuja história terminou cedo demais.
Permita-me que lhe dê um abraço, Miss Pearls.

7:33 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Uma vida assim termina sempre cedo demais para quem está á sua volta.
Que bonita homenagem!

9:07 da tarde  
Blogger M Isabel G said...

Obrigada a todos
Maria ISabel

12:43 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

eu gostava muito dela. muito, muito.
MM

5:15 da tarde  
Blogger M Isabel G said...

Querida MM
Acredita que também tinha imensa admiração por ti. Ás vezes contava como ias vestida "Muito moderna, que lhe fica muito bem. Sempre sorridente"
Imagina do que me lembro.:)
Eu não esqueço quem a tratava bem. Também não esqueço quem a tratou mal....

Um grande beijinho
Darei noticias tuas brevemente as amigas que por lá tens.
Isabel

11:29 da tarde  

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