quarta-feira, agosto 2

"Pai, ainda falta muito?"

A viagem começava a tomar forma quando as malas saíam dos armários. A logística era imensa: um mês inteirinho fora, num tempo em que não se fazia férias em apartamentos. Aquilo eram mesmo casas , mas nada de mordomias. Lençóis, cobertores, tralha diversa, as almofadas, pasteis de carne, bolos e o azeite, claro. Quem se punha a comprar azeite? Um desgoverno. As familias distribuiam-se por uma ou duas praias, daquelas frias à noite, onde só as primas mais velhas tinham licença de esplanada e claro, idade para namorar futuros maridos. Tudo debaixo de muitos olhos e lá se cumpria a tradição dos casamentos entre "tribos" congéneres . Acho eu que devia ser assim, porque os mais novos só tinham o dever de não importunar. E depois havia os tios que ficavam em hotéis e se sentavam com os outros hóspedes, que conheciam de anos e anos. Amigos sazonais da canasta e do poker, eram os grupos mais bem aprumados. A noite para as crianças era a expectativa de outro dia de praia num mar batido e frio, onde apesar disso, todos aprendiamos a nadar. Os intervalos eram os fins de semana em que não se fazia praia. Era o tempo dos picnics, das lancheiras de palha, das visitas a monumentos, às feiras, às malditas fábricas da louça que ainda povoam dezenas de armários, a jardins, a familiares nas redondezas. À tarde chegavam as empregadas de aventais às riscas, com o lanche que os meninos iam enterrando à socapa na areia. Não seria por falta de dinheiro que só se comia um bolo por dia (da lata branca ou da lata azul), mas era assim e ponto final, sem choraminguices, num tempo em que as coisas eram simples e claras. A viagem começava cedo, por estradas com curvas e mais curvas depois de uma noite mal dormida de excitação e alegria. Aqui no silêncio quase que posso ouvir as vozes no andar inferior, onde se arrumavam os sacos com as agulhas, a renda, as caixas de latão com os biscoitos e os baldes da praia. A viagem começava cedo e parecia longa, muito longa, interrompida para o almoço ainda quente em caçarola de barro enrolada em jornais. Mal tínhamos saído das terras de eucaliptos e oliveiras e já se ouvia "pai, ainda falta muito?" ou "mãe, tenho fome!". Ao primeiro pinheiro manso, "já faltava pouco", à primeira placa de praia fazia-se uma festa e os meus pais sorriam. De certeza que sorriam.

4 Comments:

Blogger 100nada said...

Minha querida, deixas-me a chorar com este teu texto. Magnífico.

12:10 da tarde  
Blogger M Isabel G said...

E eu fico sensibilizada pelas tuas palavras.
Obrigada amiga

3:48 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Venho descendo dos seus textos de cima (soberbos) e não posso deixar de expressar comoção e concordância - quanto à (in)justiça e à (in)competência que denuncia e quanto ao valor das lembranças da infância e das colorações muito particulares que conferem ao presente.
Lembranças :)

11:08 da manhã  
Blogger M Isabel G said...

Obrigada MJE pelas suas palavras.

1:38 da manhã  

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