terça-feira, maio 16

Maus hábitos, maus exemplos, um bom artigo

José Vítor Malheiros- Público de hoje
O trajecto casa-trabalho faz-me atravessar todos os dias a pé a Rua Filipe Folque, em Lisboa. Um belo prédio dos anos 40 onde em tempos esteve instalada no rés-do-chão uma garagem e que esteve anos devoluto e depois meses em obras, foi ocupado no final do ano passado pela estação de Correios das Picoas. A estação tinha vivido durante anos na Rua Tomás Ribeiro, num prédio bastante mais antigo e menos adaptável à função e os Correios constituíam aí um empecilho maior ao trânsito, com o seu movimento e o estacionamento de camiões e carrinhas. Com a mudança para a Filipe Folque (onde existia uma gigantesca cave com capacidade para acolher todas as carrinhas imagináveis e todos os caixotes, grades e paletes), as melhorias pareciam inevitáveis.
A realidade é outra. Habituadas a ocupar o passeio, a zona de estacionamento e a via pública sem rebuço, as carrinhas dos Correios persistiram nos maus hábitos na nova morada, obrigando peões a sair do passeio e a disputar o asfalto aos carros. É verdade que o panorama não tem nada de original em Lisboa. É mesmo tão banal que motoristas, carregadores e carteiros reagem com surpresa, dignidade ofendida e certeza dos direitos adquiridos perante os reparos dos passantes. Mas isso não torna a situação menos incómoda nem menos ilegítima. Seria de esperar (e de exigir) que uma empresa pública reconhecesse a esfera do espaço público e respeitasse os seus limites, mas receio que na mente de alguns dos seus dirigentes o próprio estatuto de empresa pública avalize a apropriação ilegítima do espaço de todos. A situação nem é rara nem se limita às empresas públicas: o pequeno, médio e grande comércio apropria-se indevidamente de passeios e faixas de rodagem e há mesmo quem tenha barreiras ou cones de plástico fluorescentes que coloca à frente da porta para garantir o estacionamento próprio e impedir o alheio, justificando-se com um direito consuetudinário e as dificuldades de estacionar na capital. E os serviços da administração pública fazem o mesmo, com um desplante olímpico, tolerado pelas autoridades. Os incómodos deste estado de coisas são evidentes e a situação só não merece mais denúncias porque todos ou quase todos abusam ou esperam poder um dia abusar dela em benefício próprio. O facto pode parecer de interesse menor e talvez seja, mas acontece que existe nesta usurpação do espaço público e no inerente abuso de poder um considerável valor deseducativo. A rua é a nossa primeira experiência da comunidade, de vivência do espaço social, e estes hábitos, que se vão enraizando, de estacionamento nos passeios e em segunda fila, de ocupação de faixas de rodagem para actividades de construção civil, de ocupação dos espaços verdes e das praças para publicidade e de apropriação privada dos espaços públicos em geral, criam gerações de cidadãos para quem o abuso, a força e o facto consumado se tornam a norma do relacionamento social. Uma norma que diz que os carros são mais importantes que as pessoas; que diz que quem tem carro tem o privilégio de o estacionar onde quiser sem se preocupar com quem estorva; que diz que o espaço público pode ser sequestrado por quem tiver o maior desplante; que diz que os polícias não devem incomodar nem as empresas, nem os serviços públicos, nem os poderes em geral, mas apenas os cidadãos anónimos; que diz que a lei e os bons costumes são apenas regras inventadas para enredar as pessoas sem ousadia e que o mundo pertence a todos os outros.

4 Comments:

Anonymous Anónimo said...

A civilização: já alguém viu alguma rua sem veículos ou com pessoas, naqueles filmes que mostram cidades do futuro?
E já agora: qual o destino das instalações dos correios na Tomás Ribeiro, agora trocadas pelas da Filipe Folque aqui mencionadas?

8:54 da tarde  
Blogger M Isabel G said...

BR
Bom, se ele aceitou os termos da sua proposta, terminou tudo em bem :)

BIC Laranja,
Não percebi bem o seu comentário, desculpe.
A agressividade viária que se verifica nas ruas de Lisboa não é uma "fatalidade" ou um acaso. Existe porque é permitida e não dissuadida.

Desconheço o destino dessas antigas isntalações. Segundo o artigo, estas novas instalações têm uma cave muito grande exactamente para estas manobras.

12:33 da manhã  
Blogger Out of Time said...

Aproveitando o espaço faço a mesma pergunta quanto á Rua Jacinta Marto. Porquê os carros nessa rua podem ficar num passeio que tem explicitamente um sinal de "proibido parar e estacionar" ? Será porque são dos "amigos" da Judiciária? Não é competencia da Policia fazer respeitar as Leis?

1:31 da tarde  
Blogger M Isabel G said...

Out of Time,
Onde é a Rua Jacinta Marto?

6:01 da tarde  

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