sábado, novembro 14

Coisas antigas

Valha-me Deus, mas esta louça ainda existe, ainda sobrevive ao fim de tanto tempo? Eram horríveis, aqueles armários de cozinha das cidades junto à fronteira, cheios de pyrex esverdeados e amarelos, fruto de um ingénuo contrabando com que os nacionais se entretinham aos fins de semana à míngua de outras diversões e da peseta barata.
Às vezes tento explicar aos mais novos, mas não conseguem compreender que a internet, as playstations e a Bershka nem sempre existiram. Não estranho. Já mulher, casada, voltei a alguns daqueles lugares, e faltavam-me sempre as palavras certas para explicar a alegria do passado que a escassez indígena nos provocava naqueles passeios de infância.
Durante anos, atazanei a minha mãe com traumas antigos que ela, sem contraditório e sem pestanejar, me causou até à idade adulta, obrigando-me a usar uns sapatos medonhos (caríssimos) que comprava em Espanha sempre que se aproximava o Inverno. Eu queria mocassins como os primos de Lisboa, mas o argumento era sempre o mesmo, que os meninos lá em baixo não apanhavam tanto frio. Deixa lá as galochas que isto não é a apanha da azeitona. Para me apaziguar, escolhia umas calças de ganga, um frasco de colónia da Puig e sabonetes pretos, de que não me recordo o nome. Os meninos compravam chumbinhos para a flober e davam-se por satisfeitos. No final do dia, havíamos todos de ir beber Coca-Colas como se não houvesse amanhãs e os adultos bebiam cerveja e petiscavam saladinhas deliciosas em balcões corridos, em locais onde entravam homens e mulheres. Sim, locais onde entravam homens e mulheres sem recriminação nem estigma. País da treta, o nosso.
Arrastada sem um ai para lojas de correeiros e de material de caça onde a língua nunca foi obstáculo, não via a hora de subir a escadas rolantes que me haveriam de levar à camisola exclusiva no liceu e ao êxito calculado na festa de garagem.
E foi assim, que durante anos a fio, as cozinhas das terras junto à fronteira se foram enchendo de garrafas La Casera (uma trampa de gasosa), pyrex variados, pimentão vermelho e condimentos para enchidos. A vizinhança agradecia as pantufas, os caramelos, o turrón (terrun, para os nacionais) e o brandy com o touro. Eu agradecia tudo, à excepção dos sapatos, e voltava sempre feliz.
Deixei estar a louça onde a encontrei. Suave contrabando, sobreviveu ao controlo da fronteira, a mudanças de casa, de mãos e há-de sobreviver assim nas minhas recordações.

7 Comments:

Blogger O Pescador said...

Olá Isabel.
Esqueceste a Marie Brizard, tão do agrado das senhoras! :-)

7:52 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

esqueceste o sabonete PUIG e La toja e o Duralex. TB a pantufa com pompom

11:45 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Suave Contrabando ou Contrabando queque?

7:41 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Cara Miss Pearls

"Coisas antigas de Miss Pearls"
Que título mais bonito para um livro em que publicasse todos os seus textos da "família" deste seu post !!!!
Fica a exclamação e, ....quem sabe, ....a sugestão.
TeB

5:08 da tarde  
Blogger M Isabel G said...

T&B
Obrigada:)
Mas um livro? Não basta de lixo no mercado?
Um abraço

Anónimo:
Você é parv@! Nem sabe do que fala!

Pescador,
Pois ! Aquela zurrapa da Marie Brizard!!!:)Vejo que sabes do que falo.:)

Pois, o sabonete La Toja e as pantufas, claro, COm e sem pom-pom:)

7:47 da tarde  
Blogger CPrice said...

.. que deliciosas recordações Isabel :)

e ficavamos felizes, de facto*

Beijinho e bom fim-de-semana

11:09 da manhã  
Anonymous Xixao said...

Buenisimos recuerdos! :)

10:32 da tarde  

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