Um outro mundo é possível
Um outro mundo existe para lá da azáfama que se vive nos centros comerciais no início de cada ano. Na loja onde aguardei longos minutos para levantar um aparelho avariado, várias pessoas reclamavam por deficiências nos hipods, nas máquinas fotográficas xpto e noutras máquinas inomináveis cujas funções desconheço. As salas cheias de engenhocas electrónicas parecem fascinar uma multidão de entendidos, os pedidos de informações para um livro ou um filme amontoam-se junto das balcões dos funcionários, as filas para pagamentos dos saldos chegam às portas e os parques estão tão cheios lá dentro como cá fora.
Isto tudo a propósito de quê? Nas vésperas de Natal estive nas minhas berças, lá onde o diabo perdeu a capa, em visita a uma amiga de toda a vida e ali estivemos, sobreviventes de uma longa amizade, com sombras amáveis de um colo que já se perdeu. À excepção de um tractor, cujo condutor não contava obviamente com a presença de nenhum outro veículo, foi a única pessoa que encontrei em diversas ruas por onde passei. "Os filhos vieram buscar os velhotes à terra para os levarem para a cidade", explicou-me a minha amiga sem vontade de festas, "e ter alguém que me traga a lenha, já é um milagre".
Longe dos telemóveis de última geração, das férias no Brasil, do filme da Soraya Chaves, das confusões no BCP, da inauguração de novas estações de metro, por ali, naquela aldeia bonita, limpa e tão vazia, tudo ganha uma nova dimensão. Coisas complicadas como o cemitério fechado com a habitual maçada de ir buscar a chave a casa de alguém, uma surpresa agradável como o velho conhecido bueiro da rua, fechado recentemente, as últimas filhós da aldeia, o jornal regional, servem para conversas amenas enquando se ajeita a lareira.
No ar sentia-se o cheiro a mosto dos lagares e só o sino interrompia o silêncio nos campos abandonados, vã poesia para quem sai mas não para quem lá fica.
5 Comments:
comovente Miss. O seu melhor texto.
mt
Quanta nostalgia... Será mesmo "possível", por muito tempo?
JCD
Eu não escrevi isto com nenhuma ideia de nostalgia. Aliás, não são os locais que são importantes: só as pessoas são importantes.São as pessoas que fazem os nossos "portos seguros" e por isso tornam os locais importantes.
De resto, o que queria dizer é que basta fazer duas centenas de quilómetros para mudar de prioridades. Lá na minha aldeia , se a livraria já recebeu o último livro do Cormac Mc Carthy na língua original, é totalmente :)
irrelevante. Mas tapar os bueiros significa menos mosquitos e menos moscas, e isso é importante :)
Muito bem. Muito bem!
Cumpts.
.. "só as pessoas são importantes.." .. tal como a sua presença nos "nossos locais" .. a minha aldeia natal é assim: vazia de vultos .. carregadas de recordações :)
Beijinho Miss Pearls .. e os votos de um 2008 .. "impar" ;)
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